Cérebro protegido
Laboratório da Unicamp desenvolve
próteses em titânio para reparação de falhas ósseas craniofaciais,
geralmente provocadas por acidentes ou doenças oriundas de má formação
Silas Scalioni
Estado de Minas: 09/11/2013
André Jardini, um dos integrantes do grupo de pesquisadores do Biofabris, ressalta que a personalização da produção de cada peça é um dos diferenciais do projeto |
Para quem já sofreu algum acidente ou carrega alguma doença cuja consequência é a perda de parte do osso da cabeça, a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tem boas notícias: pesquisadores da instituição vêm trabalhando em um projeto, único no país, de fabricação de próteses em titânio, dentro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Biofabricação (Inct/Biofabris). Segundo os responsáveis, 10 pacientes terão o problema resolvido até o fim do ano, sendo que quatro já estão prontos para a cirurgia, que será realizada em breve no Hospital das Clínicas da Unicamp. Em comum, todos já passaram por uma ou mais cirurgias reparadoras sem sucesso. A maioria é homem, apresenta sequelas decorrentes de traumas de acidentes e têm entre 20 e 60 anos.
A equipe que trabalha no projeto é composta por Paulo Kharmandayan, professor e coordenador da área de Cirurgia Plástica do Departamento de Cirurgia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM); pelo coordenador do Biofabris Rubens Maciel Filho, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ); pela professora Cecília Zavaglia, do Departamento de Engenharia de Materiais da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM); e pelo pesquisador sênior do Biofabris André Jardini, também professor da FEQ.
No total, 15 pacientes foram pré-escolhidos para essa etapa de estudos clínicos. A primeira cirurgia foi realizada no ano passado e o segundo paciente operado recupera-se de um procedimento realizado há dois meses. Ambos, de acordo com os pesquisadores, vivem sem qualquer problema com as novas próteses de titânio para a correção de deformidades cranianas. Cada procedimento realizado ajuda a equipe a avaliar a adaptação do corpo às peças, que são produzidas sob medida.
O conceito de biofabricação consiste em usar técnicas de engenharia e biomateriais para a construção de estruturas tridimensionais, fabricação e confecção de substitutos biológicos que atuarão no tratamento, restauração e estruturação de órgãos e tecidos humanos. Atualmente, próteses sob medida do tipo pesquisado pela Unicamp são produzidas apenas no exterior e com alto custo. Outras, construídas no Brasil com outros materiais, como metacrilato e cerâmica, podem custar mais de R$ 100 mil. “Nossa ideia é desenvolver um produto para ser utilizado pelo Sistema Único de Saúde (SUS)”, afirma a professora Cecília Zavaglia, ressaltando que a técnica, desenvolvida para a produção das próteses craniofaciais, poderá ser replicada para qualquer osso do corpo humano. “Além disso, as pesquisas realizadas no Biofabris podem resultar na descoberta de novos biomateriais”, revela.
De acordo com o pesquisador André Jardini, a matéria prima das peças cranianas é uma liga à base de titânio, elemento metálico já amplamente empregado em próteses ortopédicas e odontológicas. “Desenvolvemos próteses personalizadas, ou seja, com as dimensões precisas à falha existente no paciente, em material leve e resistente o suficiente para preencher uma falha óssea de larga escala”, explica Jardini. “A escolha do titânio não foi aleatória, já que o metal vem sendo usado há certo tempo pela área médica”, completa Paulo Kharmandayan.
Uma indústria brasileira Para a equipe de pesquisadores, o conhecimento, o domínio e o registro científico de todo o processo resultante do programa vai facilitar a obtenção de licenças obrigatórias para a comercialização desse tipo de produto, como a que é emitida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e favorecer o surgimento de uma indústria nacional capaz de suprir a demanda de pacientes no país. “O objetivo do Biofabris é potencializar o desenvolvimento de tecnologia e do saber, além de difundir o conhecimento e as condições de fabricação. Toda a tecnologia e conhecimento agregados pelo estudo serão brasileiros”, afirma André Jardini. “No futuro, quem sabe, poderemos até construir máquinas, desenvolver novos materiais e dar início a um novo segmento industrial”, avalia o coordenador do Biofabris Rubens Maciel Filho.
Graças ao caráter multidisciplinar e à participação de várias instituições de pesquisa do país, o Biofabris é um laboratório para variados tipos de pesquisas, de doutorado e mestrado, que ajudam a aprimorar os projetos em andamento. Novos biomateriais, técnicas e empregos têm sido desenvolvidos na sede da unidade, no câmpus da Unicamp. Para se ter uma ideia do potencial a ser incentivado só nesse segmento, há hoje no Brasil menos de mil empresas que produzem órteses e próteses, segundo a Associação Brasileira de Ortopedia Técnica (Abotec), para um contingente de 25 milhões de brasileiros que necessitam delas. Na Alemanha, o número é três vezes maior.
Três perguntas para...
Wagner Henriques de Castro, Coordenador do Programa de Residência de Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-facial do Hospital das Clínicas da UFMG
A UFMG realiza algum trabalho de destaque nessa área?
O Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais, por meio de seus serviços de cirurgia e traumatologia buco-maxilo-facial, otorrinolaringologia, cirurgia plástica, cirurgia de cabeça e pescoço e neurocirurgia, atende pelo SUS pacientes portadores de deformidades craniofaciais, que geralmente são decorrentes de patologias congênitas, traumáticas ou neoplásicas. Para o tratamento, muitas vezes é necessária a realização de cirurgias reconstrutivas, que empregam enxertos de tecido moles, enxertos ósseos, retalhos microvascularizados, materiais de preenchimento ou instalação de próteses. As próteses em titânio são usadas quando se deseja substituir parcial ou totalmente o osso acometido. A principal vantagem da técnica é que, diferentemente dos enxertos, ela não envolve a criação de um sítio doador, diminuindo a morbidade do procedimento cirúrgico. Mas são dispositivos de alto custo, o que infelizmente limita seu uso em instituições de saúde pública.
Que outras técnicas e materiais existem para cirurgias reparadoras?
Na área da cirurgia e traumatologia buco-maxilo-facial, alguns casos de ATM (articulação têmporo-mandibular) têm próteses personalizadas indicadas para substituir as articulações, uni ou bilateralmente. Todavia, o emprego de enxertos ósseos livres ou microvascularizados, com a mesma finalidade, também se constitui em uma excelente opção de tratamento.
Os materias usados podem causar rejeição e quanto tempo duram sem gerar problema no organismo humano?
Essas de titânio são eternas. Em relação às próteses de ATM, sua longevidade varia a cada caso, considerando-se vários fatores, mas espera-se que tais dispositivos possam preservar os aspectos funcionais e estéticos do órgão substituído por um prazo mínimo de 10 anos. Geralmente, a necessidade de troca dessas próteses não está associada a rejeições, mas a processos relacionadas a fadiga do material, o que pode levar a fraturas, infecção pós-operatória ou ao remodelamento das superfícies ósseas onde foram fixadas.
Sob medida
Veja como ocorre o processo de fabricação e implantação de uma prótese craniana:
Tudo começa com a realização de exames em um tomógrafo, capaz de construir, de forma não invasiva e em imagens (2D), a área do crânio a ser reparada por meio de milhares de fatias captadas a cada milímetro fotografado.
As informações obtidas são inseridas no programa InVesalius – software público para a área de saúde que auxilia o diagnóstico e planejamento cirúrgico a partir de imagens 2D –, permitindo reconstruir em 3D o crânio do paciente, fazendo praticamente uma escultura digital. Nessa etapa, comparando o lado sadio com a parte afetada, os pesquisadores conseguem criar uma prótese com dimensão e formato mais adequados, preservando a aparência e recuperando a função original de proteção ao cérebro.
A partir do modelo virtual da cabeça do paciente, são feitos um crânio-modelo e uma prótese, em polímero (que são compostos químicos de elevada massa molecular), com o apoio de uma impressora 3D, equipamento capaz de produzir um modelo tridimensional.
Os dois moldes são usados pela equipe médica para avaliar a peça e para planejar o procedimento operatório, o que ajuda a reduzir o tempo da operação e a evitar eventuais complicadores, como dificuldades para a fixação da peça.
Aprovado o protótipo pelos engenheiros e médicos da equipe, começa a produção em um equipamento chamado Sinterização Direta de Metais por Laser. Na prática, ele permite esculpir a prótese com titânio em pó, camada por camada, e irradiada por laser, surgindo assim o modelo definitivo da prótese craniana, construído com o metal fundido.
O último passo é a cirurgia para implantar a prótese, depois de ela passar por um tratamento da superfície, limpeza e esterilização no Laboratório de Tratamento e Funcionalização de Superfície do Instituto de Física (IFGW) da Unicamp, coordenado pelo físico Carlos Sales Lambert. A cirurgia encerra um ciclo de limitações, dores e isolamento para os pacientes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário