Carolina Braga
Estado de Minas: 09/11/2013
Eduardo Coutinho não é de falar muito nem de se manifestar sem ser perguntado: respeito ao valor da palavra que está na origem de seu cinema |
Ele diz que escolheu o documentário para não ter que decidir, soberanamente, onde colocar a câmera. Também costuma falar que fazer cinema é uma coisa muito chata, já que não dá status e, ultimamente, nem dinheiro. Mas Eduardo Coutinho é Eduardo Coutinho. É aquele que se diz angustiado toda vez que precisa falar em público ou explicar seu método de trabalho. Evita aviões e, por isso, não faz a menor questão de sair por aí badalando sobre suas criações. Foi seduzido pelo documentário no fim da década de 1960 e desde então enfrenta cruzadas a cada novo projeto. Afinal, como também costuma afirmar, “se você não se surpreender com o que faz, é melhor não fazer”.
No ano em que completa 80 anos, as esperadas homenagens fizeram fila. O cineasta ganhou reverências na Festa Literária de Paraty e na Mostra de Cinema de São Paulo, mas é em forma de livro que a celebração se dá de maneira digna e completa. Com 704 páginas, o calhamaço Eduardo Coutinho, organizado por Milton Ohata, está sendo lançado pela Cosac Naify e Edições Sesc. A publicação disseca a obra tanto da perspectiva do autor, como também da de 40 convidados, entre críticos e pesquisadores.
Não é um tipo de livro para ser encarado de forma linear. Isso depende da vontade do leitor. Você pode começar de onde quiser. Se entregar a uma leitura longa, detalhada, ou apenas consultar um trecho. A obra foi pensada para atender tanto quem quer conhecer como Coutinho pensa o próprio ofício, acompanhar a construção do raciocínio cinematográfico dele, como também descobrir os filmes e seus bastidores. Não tem nada cronológico.
O diretor de Cabra marcado para morrer, Edifício Master, Jogo de cena e tantos outros documentários marcantes é conhecido por estabelecer uma relação muito próxima com seus personagens, geralmente figuras anônimas. Daí nascem estilos – por que não falar em gêneros? – como o “cinema de conversação”, que o próprio Eduardo Coutinho também faz questão de reinventar. Se a ele o que mais interessa é o real, o livro procura revelar a verdade por trás da realidade. Não foi um caminho simples.
Antes de ser conhecido como cineasta, Coutinho trabalhou como copidesque do Jornal do Brasil. Naquela época, entre 1973 e 1974, atuou como crítico do periódico. Foi uma experiência breve: apenas 40 textos lançados pela primeira vez em livro. É curioso ter contato com as análises que fez para trabalhos de gêneros e nacionalidades variadas, inclusive a produção hollywoodiana da época.
Como Milton Ohata observa o conjunto de textos mostra os “altos e baixos da experiência rotineira de um espectador” que, de uma forma ou de outra, também reverberou nele enquanto cineasta. “Seus textos de crítica mostram quão armado ele estava para realizar bem”, pontua Milton. Coutinho abandonou a crítica quando entrou para a equipe do Globo repórter, experiência também marcante na carreira dele.
Coutinho carrega a fama de ser avesso a entrevistas. Faz sentido, para alguém que assegura não sair por aí falando sozinho. “Não sou louco; só falo se me perguntam. Só uma pessoa louca é que sai falando pela rua sem pedirem.” Eis outro valor do livro. Milton compila entrevistas publicadas entre 1976 e 2012. O diretor iniciou a trajetória no cinema no Centro de Estudos Cinematográficos em São Paulo, com passagens pelo Museu de Arte Moderna e pelo Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris, entre 1958 e 1960. Foi nessa época que começou as pesquisas para fazer Cabra marcado para morrer, longa que ficaria pronto 17 anos depois.
Além deste filme, considerado uma de suas obras-primas, as entrevistas tratam de Santo forte (1999) – o longa que o tirou do ostracismo – Edifício Master (2002), Peões (2004), Jogo de cena (2007) e Moscou (2009). São conversas publicadas em jornais e revistas do Brasil e exterior. “O meu cinema se interessa pelo que é precário. É um cinema que fala sobre o que é fazer cinema. Meu cinema não é heroico nem tem heróis. Muitos dizem que eu abandonei a política, que não faço cinema político. Eu sempre odiei o cinema militante”, afirmou em entrevista em julho de 2009.
Olhar alheio
Depois do resgate histórico na própria “voz” de Coutinho, Milton Ohata reuniu depoimentos de companheiros de jornada como Rolf Orthel, Zelito Viana, Ferreira Gullar, Vladimir Carvalho, Sérgio Goldberg, Jordana Berg, Cristiana Grumbach, Laura Liuzzi e outros. A eles coube a tarefa de descrever Coutinho. Já aos 27 críticos, professores e pesquisadores convidados ficou o encargo da produção de ensaios inéditos sobre a produção propriamente dita.
“A história de Eduardo Coutinho não autoriza otimismos apaziguadores. Nada mais distante dele do que narrativas que oferecem a ilusão de que é possível escapar do drama da condição humana. A cada filme que termina – muitas vezes antes de terminá-lo –, a dúvida retorna e se impõe. Não existem garantias de que sempre haverá uma saída. Ele gosta de uma ideia que atribui a Benjamin, segundo a qual os deuses só deram a esperança aos homens em consideração aos desesperançados: ‘Você precisa estar perdido para se achar, precisa ter perdido a esperança para ter esperança, precisa ter perdido tudo para que alguma coisa sobre. Senão é otimismo beato, é bobagem, é dialética vulgar, é deixar de ver as ruínas’. Avesso a projetos de redenção, seu cinema se contenta em tentar enxergar as coisas”, afirmou o cineasta João Moreira Salles.
Para Claudia Mesquita e Leandro Saraiva, o cinema de Coutinho é forte candidato a se transformar em régua e compasso da produção nacional, já que ele “vem burilando um ascetismo que, limitando ao máximo os recursos cinematográficos empregados, acaba por deixar exposta a relação básica, constitutiva de qualquer filme (documental ou não): a relação entre quem filma e quem é filmado”.
O que o livro organizado por Milton Ohata revela de maneira muito clara é o quanto Eduardo Coutinho procurou ser uma pessoa coerente com o que pensa. E como ele mesmo diz: não há nada fechado. As coisas, as pessoas e a vida estão sempre se contaminando. Transformando. Eduardo Coutinho não faz cinema por vaidade. É muito mais uma questão de sobrevivência.
“Eu não sou a escola, não sou a polícia, não sou político, mas queria encontrar uma forma para que possamos entender como é esse mundo de que tanto falamos. Por isso não falo de política. Como cidadão, tudo bem. Mas eu não estou interessado na utopia daqui a 100 anos. A pequena utopia é a seguinte: conseguir fazer cinema, conseguir sobreviver e tentar mudar a visão do mundo sobre certos temas. Se conseguir mudar alguma coisa no documentário, já será algo.”
Trechos
“Creio que a principal virtude de um documentarista é a de estar aberto ao outro, a ponto de passar a impressão, aliás verdadeira, de que o interlocutor, em última análise, sempre tem razão. Ou suas razões. Esta é uma regra de suprema humildade, que deve ser exercida com muito rigor e da qual se pode tirar um imenso orgulho.” Texto escrito para o catálogo do Festival Cinéma du Réel em 1992
“Eu não faço roteiros escritos, inclusive porque acho que se eu fizer um roteiro escrito não preciso mais filmar, já está feito o filme. Tento fazer filmes em que tenho perguntas a colocar e vou tentar saber quais são as respostas fazendo o filme. Geralmente o filme, quando dá certo, não termina com uma resposta-síntese. Então, eu não faço cinema para militantes, graças a Deus, e meus filmes terminam, suponho eu, com perguntas e reflexões e não com uma resposta.” Publicado em Projeto História, nº 15, PUC-SP, 1997.
FILMOGRAFIA
As canções (2011)
Um dia na vida (2010)
Moscou (2009)
Jogo de cena (2007)
O fim e o princípio (2006)
Peões (2004)
Edifício Master (2002)
Porrada (2000) – curta
Babilônia 2000 (1999)
Santo forte (1999)
Boca de Lixo (1993)
O fio da memória (1991)
Santa Marta – Duas semanas no morro (1987)
Cabra marcado para morrer (1985)
Exu, uma tragédia sertaneja (1979) – curta
Teodorico, o imperador do sertão (1978)
Seis dias de ouricuri (1976)
Faustão (1971)
O homem que comprou o mundo (1968)
O pacto – episódio de ABC do amor (1967)
EDUARDO COUTINHO
. Organizado por Milton Ohata
. Editora Cosac Naify/Edições Sesc, 704 páginas, R$ 69,90
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