sábado, 9 de novembro de 2013

MEIAS VERMELHAS - Ana Cristina Reis

O Globo - 09/11/2013

Numa tarde
de domingo,
máfia da
Córsega,
Legião
Estrangeira,
viagem para
Cingapura e
visita a um

bunker

Conheci Murilo na casa do meu marido há seis anos. Ele contava de uma visita a um ambulatório para falcões; eu notei suas meias vermelhas; foi simpatia à primeira vista. Depois só o vi rapidamente. Então na semana passada nos esbarramos, e ele disse: “Vou ligar para nos encontrarmos”, o que de fato fez, talvez por ser natural deNiterói — os niteroienses parecem não ter sucumbido ao carioquês “A gente se vê”.

Murilo chegou pontualmente, com uma garrafa de pinot noir e meias vermelhas. Ouvimos o barulho do vento (foi um domingo pré-tempestade), ele olhou os porta-retratos, eu servi um queijo. Brindamos à memória do Luiz Paulo. Houve um instante de silêncio. Até o Murilo notar um enfeite.

— Da Índia? Eu passei três meses num retiro perto de Kalimpong. Era um preparatório de tantra. Não fui movido por impulso místico, mas curiosidade.

Murilo foi de ônibus de Darjeeling a Kalimpong. De lá, viajou em lombo de mula até o retiro. Havia meditação ao nascer e ao pôr do sol. Nos dias claros, via-se o Himalaia. À tarde, a montanha ficava toda rosada. “Era um lugar metafísico, isolado.” Dieta lactovegetariana, cultivavam a própria horta. Tinha número par de homens e mulheres, separados em bangalôs. Nas meditações, a guru reclamava que Murilo chegava atrasado. O relacionamento físico não era permitido. Havia a energização de chacras com cristais.

— Você deve estar ciente sobre os estágios do tantra? — perguntou Murilo.

— Olha, eu só ouvi já falar foi do sexo tântrico...

— O tantra é feminino. O elemento masculino é muito mais frágil do que o feminino. O homem se perde entre as mãos de uma mulher. Mas o sexo dentro do tantra é um meio, não um fim — esclareceu Murilo. — É como se fosse uma ioga do sexo, para expandir os sentidos. Porque só sexo não pode ser a resposta. O sexo ainda é um tabu. Como disse Einstein, é mais fácil você destruir o núcleo do átomo do que destruir o preconceito.

De Einstein, a conversa foi para a noção de infinito (o tempo começa sempre, nunca termina...). Mas rapidamente, ufa!, voltou para o retiro, o dia da despedida. A guru disse para Murilo não olhar para trás, mas ela ia lhe pedir uma coisa: que aguentasse os trancos da vida, e não chegasse atrasado.

— A experiência me valeu porque minha vida foi muito de altos e baixos — disse Murilo.

— Altos e baixos? Me conta — pedi.

Em 1946, ele saiu de Niterói para a rádio BBC de Londres. Em cinco anos, tinha o seu próprio programa. Viajou na estreia da ponte aérea Londres-Berlim. Viu o primeiro festival de Wagner e as primeiras Olimpíadas pós-guerra. Cumprimentou o rei George (o bisavô do filho de William e Kate). Conheceu o bunker de Hitler, onde Goebbels e a mulher assassinaram os seis filhos.

Depois de cinco anos na rádio, veio a impaciência. Com um amigo árabe formado em Letras Clássicas, viajou para Marselha com um plano: juntar-se à Legião Estrangeira. Preencheu a papelada, faltava só um exame, quando conheceu numa barraquinha de crepe uma córsica que o tirou do eixo. No dia seguinte, só com uma mochila, pegou um trem para Paris com a mulher com quem viveria um ano e meio, entre cenas de ciúme, prédio de cinco andares com só um banheiro, arma escondida dentro de sacola de supermercado e fuga de traficantes de drogas da Córsega.

Numa noite, com medo de desistir em alguma parada se fosse de trem, Murilo fugiu de avião da paixão e do perigo para embarcar num navio cargueiro que ia para Cingapura.

Não sei o resto da história porque ele precisou sair correndo.

Não podia perder a barca: sua mulher o esperava para jantar.

A idade do Murilo? 89 anos.

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