A história não acabou
João Paulo
Estado de Minas: 28/12/2013
Às vezes o que há de mais humano nas pessoas é o amor aos cães. E é por isso que, mesmo adversários radicais, muitos homens se igualam na capacidade de gostar de animais. O romance de Leonardo Padura O homem que amava os cachorros trata dos principais momentos políticos do século 20, da Primeira Guerra Mundial à derrocada do comunismo, sem perder nunca a dimensão da individualidade e de suas ricas contradições. É um romance extraordinário, que dá à história real uma dimensão que só é possível pela ficção, em sua liberdade e abrangência. O livro vale por uma biblioteca inteira de estudos acadêmicos e ainda diverte e faz pensar.
Leonardo Padura é cubano. Autor de romances policiais protagonizados pelo detetive Mario Conde, ambientados em seu país, inaugura um gênero literário com seu novo livro: o thriller histórico. Sua narrativa é ágil e, mesmo em quase 600 páginas, não perde um momento sequer de tensão. Cuba está presente como cenário e na voz do narrador. E é exatamente a dupla inscrição do livro, entre a história e a ficção, num equilíbrio feito com mão de mestre, que justifica que O homem que amava os cachorros seja considerado um dos romances mais importantes dos últimos anos.
O livro tem como projeto contar a história real, com seus personagens verdadeiros (e alguns inventados), a partir da ficção. E não é qualquer história, e muito menos habitada por personagens convencionais. A narrativa atravessa o século 20, chegando ao começo do 21, sempre em torno dos maiores fatos políticos do período: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a ascensão do nazismo, a polarização da Guerra Fria e a Revolução Cubana. No avesso desses momentos, o ocaso do sonho comunista e os descaminhos das experiências socialistas.
Há três personagens centrais no romance, dois reais e um fictício. O livro é dividido em capítulos que são narrados a partir de cada um dos protagonistas, em três focos distintos que se sucedem, que vão tecendo uma relação que se torna mais clara à medida que o romance se desenvolve. O primeiro personagem – e de certa forma figura central da história – é Leon Trotski (1879–1940), que aparece em seu embate político com Stálin, que o derrotou no comando da revolução, e faz de tudo para apagar sua figura dos rumos do comunismo, tachando-o de traidor, renegado e revisionista. Em busca de um exílio que permitisse manter sua atividade política, ele passa por vários países até chegar ao México, onde será assassinado com um golpe de picareta na cabeça.
A vida de Trotski é de uma riqueza única, pela força intelectual e humana do personagem, além do fato de participar de uma das mais renhidas disputas ideológicas do século 20. No arco temporal que vai da Revolução Russa aos primeiros momentos da Segunda Guerra, a vida dele se confunde com a do próprio período. Foram 20 anos que mudaram o mundo, pelo olhar da ação de um dos homens que ajudou a guiar a roda da história. O Trotski de Padura é também um homem que ama, que se preocupa com o destino dos filhos, e que também precisa da companhia de seus cães para se sentir melhor.
Matador
O segundo personagem é o jovem militante espanhol Jaime Ramón Mercader del Río Hernadéz (1913-1978). É ele que dá nome ao livro, o homem que amava os cachorros. Ramon Mercader entrou para a história como o assassino de Trotski, a soldo de Stálin. Mas nada é mecânico nessa história. Até ser recrutado pela polícia secreta da União Soviética, Ramon foi exemplo do revolucionário de todas as boas causas, tendo lutado na Guerra Civil Espanhola e dedicado sua vida ao comunismo.
O leitor fica conhecendo outro Ramon Mercader, não o matador de aluguel eternizado pela história oficial, mas o filho de Caridad del Río, uma mulher avançada para seu tempo. Ele entrou ainda adolescente para a luta política, foi preso, viveu na clandestinidade, uniu-se a uma revolucionária como ele, participou da luta armada e, em razão de sua coragem, foi recrutado em 1937 pela URSS. A missão que viria em seguida se colaria à sua pele como destino. Preso depois da morte de Trotski, ficou 20 anos encarcerado no México, de onde seguiu para a URSS e, em 1970, para Cuba, onde passaria seus últimos anos.
É em Cuba, quando tenta entrar em acordo com seu passado, que Mercader conhece o terceiro personagem do romance, o veterinário e aspirante a escritor Ivan Cárdenas Maturell. Como quem ata as várias pontas que foram sendo desfiadas ao longo da narrativa, ele vive, no momento, os dilemas que parecem ainda presentes na história, mesmo que essa deusa já tenha sido dada por morta.
Com o fim do comunismo na Rússia, a queda do Muro de Berlim e a crise em Cuba, sem a força ideológica que cimentou posições ao longo de décadas, Iván tem à sua frente um destino vivo. São dilemas reais de um país que busca se afirmar na transição de um regime que murcha e anda não divisa com clareza para onde caminha. O que há de mais forte é a insatisfação, que prega na pele como se a vida de verdade ainda estivesse para começar.
O homem que amava os cachorros é um livro que mostra que a história não acabou. Não apenas a história de Cuba, congelada de certa forma em projetos de outros tempos, mas a própria grande narrativa das utopias, algo que alimentou o mundo desde a aurora do século passado. A disputa entre Stálin e Trotski, o sentido da esquerda num mundo marcado por desigualdades, o papel da mão do homem nos rumos da política, a força construtiva e destrutiva das ideologias, o sonho revolucionário, a busca da liberdade, o eterno enredo do traidor e do herói – tudo isso se mantém pulsante na história narrada por Padura, por meio das vozes, sonhos e pesadelos de seus personagens.
Obra-prima de romance histórico, o livro é também um conjunto soberbo de caracteres recrutados entre os maiores e mais mesquinhos de um século que não acabou. E mostra que a história é feita de gente, algo que só o romance é capaz. O homem que amava os cachorros passa a ser, ao lado do filme O assassinato de Trotski, de Joseph Losey (1972), e do romance A segunda morte de Ramón Mercader (1969), de Jorge Semprún, uma das obras artísticas que ajudam a compreender os homens, a história e a relação entre os dois universos. E dá a Trotski nova chance de se defender do silêncio a que foi relegado.
O homem que amava os cachorros
. De Leonardo Padura
. Editora Boitempo, 590 páginas, R$ 69
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
João Paulo
Estado de Minas: 28/12/2013
O cubano Leonardo Padura levou a experiência da literatura policial para seu thriller histórico |
Às vezes o que há de mais humano nas pessoas é o amor aos cães. E é por isso que, mesmo adversários radicais, muitos homens se igualam na capacidade de gostar de animais. O romance de Leonardo Padura O homem que amava os cachorros trata dos principais momentos políticos do século 20, da Primeira Guerra Mundial à derrocada do comunismo, sem perder nunca a dimensão da individualidade e de suas ricas contradições. É um romance extraordinário, que dá à história real uma dimensão que só é possível pela ficção, em sua liberdade e abrangência. O livro vale por uma biblioteca inteira de estudos acadêmicos e ainda diverte e faz pensar.
Leonardo Padura é cubano. Autor de romances policiais protagonizados pelo detetive Mario Conde, ambientados em seu país, inaugura um gênero literário com seu novo livro: o thriller histórico. Sua narrativa é ágil e, mesmo em quase 600 páginas, não perde um momento sequer de tensão. Cuba está presente como cenário e na voz do narrador. E é exatamente a dupla inscrição do livro, entre a história e a ficção, num equilíbrio feito com mão de mestre, que justifica que O homem que amava os cachorros seja considerado um dos romances mais importantes dos últimos anos.
O livro tem como projeto contar a história real, com seus personagens verdadeiros (e alguns inventados), a partir da ficção. E não é qualquer história, e muito menos habitada por personagens convencionais. A narrativa atravessa o século 20, chegando ao começo do 21, sempre em torno dos maiores fatos políticos do período: a Primeira Guerra Mundial, a Revolução Russa, a Guerra Civil Espanhola, a ascensão do nazismo, a polarização da Guerra Fria e a Revolução Cubana. No avesso desses momentos, o ocaso do sonho comunista e os descaminhos das experiências socialistas.
Há três personagens centrais no romance, dois reais e um fictício. O livro é dividido em capítulos que são narrados a partir de cada um dos protagonistas, em três focos distintos que se sucedem, que vão tecendo uma relação que se torna mais clara à medida que o romance se desenvolve. O primeiro personagem – e de certa forma figura central da história – é Leon Trotski (1879–1940), que aparece em seu embate político com Stálin, que o derrotou no comando da revolução, e faz de tudo para apagar sua figura dos rumos do comunismo, tachando-o de traidor, renegado e revisionista. Em busca de um exílio que permitisse manter sua atividade política, ele passa por vários países até chegar ao México, onde será assassinado com um golpe de picareta na cabeça.
A vida de Trotski é de uma riqueza única, pela força intelectual e humana do personagem, além do fato de participar de uma das mais renhidas disputas ideológicas do século 20. No arco temporal que vai da Revolução Russa aos primeiros momentos da Segunda Guerra, a vida dele se confunde com a do próprio período. Foram 20 anos que mudaram o mundo, pelo olhar da ação de um dos homens que ajudou a guiar a roda da história. O Trotski de Padura é também um homem que ama, que se preocupa com o destino dos filhos, e que também precisa da companhia de seus cães para se sentir melhor.
Matador
O segundo personagem é o jovem militante espanhol Jaime Ramón Mercader del Río Hernadéz (1913-1978). É ele que dá nome ao livro, o homem que amava os cachorros. Ramon Mercader entrou para a história como o assassino de Trotski, a soldo de Stálin. Mas nada é mecânico nessa história. Até ser recrutado pela polícia secreta da União Soviética, Ramon foi exemplo do revolucionário de todas as boas causas, tendo lutado na Guerra Civil Espanhola e dedicado sua vida ao comunismo.
O leitor fica conhecendo outro Ramon Mercader, não o matador de aluguel eternizado pela história oficial, mas o filho de Caridad del Río, uma mulher avançada para seu tempo. Ele entrou ainda adolescente para a luta política, foi preso, viveu na clandestinidade, uniu-se a uma revolucionária como ele, participou da luta armada e, em razão de sua coragem, foi recrutado em 1937 pela URSS. A missão que viria em seguida se colaria à sua pele como destino. Preso depois da morte de Trotski, ficou 20 anos encarcerado no México, de onde seguiu para a URSS e, em 1970, para Cuba, onde passaria seus últimos anos.
É em Cuba, quando tenta entrar em acordo com seu passado, que Mercader conhece o terceiro personagem do romance, o veterinário e aspirante a escritor Ivan Cárdenas Maturell. Como quem ata as várias pontas que foram sendo desfiadas ao longo da narrativa, ele vive, no momento, os dilemas que parecem ainda presentes na história, mesmo que essa deusa já tenha sido dada por morta.
Com o fim do comunismo na Rússia, a queda do Muro de Berlim e a crise em Cuba, sem a força ideológica que cimentou posições ao longo de décadas, Iván tem à sua frente um destino vivo. São dilemas reais de um país que busca se afirmar na transição de um regime que murcha e anda não divisa com clareza para onde caminha. O que há de mais forte é a insatisfação, que prega na pele como se a vida de verdade ainda estivesse para começar.
O homem que amava os cachorros é um livro que mostra que a história não acabou. Não apenas a história de Cuba, congelada de certa forma em projetos de outros tempos, mas a própria grande narrativa das utopias, algo que alimentou o mundo desde a aurora do século passado. A disputa entre Stálin e Trotski, o sentido da esquerda num mundo marcado por desigualdades, o papel da mão do homem nos rumos da política, a força construtiva e destrutiva das ideologias, o sonho revolucionário, a busca da liberdade, o eterno enredo do traidor e do herói – tudo isso se mantém pulsante na história narrada por Padura, por meio das vozes, sonhos e pesadelos de seus personagens.
Obra-prima de romance histórico, o livro é também um conjunto soberbo de caracteres recrutados entre os maiores e mais mesquinhos de um século que não acabou. E mostra que a história é feita de gente, algo que só o romance é capaz. O homem que amava os cachorros passa a ser, ao lado do filme O assassinato de Trotski, de Joseph Losey (1972), e do romance A segunda morte de Ramón Mercader (1969), de Jorge Semprún, uma das obras artísticas que ajudam a compreender os homens, a história e a relação entre os dois universos. E dá a Trotski nova chance de se defender do silêncio a que foi relegado.
O homem que amava os cachorros
. De Leonardo Padura
. Editora Boitempo, 590 páginas, R$ 69
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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