sábado, 28 de dezembro de 2013

Quintana ao vento - José Castello


O Globo 28/12/2013


NAS MÃOS DE MÁRIO QUINTANA, O LIRISMO É A LINHA COM QUE ELE COSE O MUNDO E O CONECTA AO SUBLIME


O que é a poesia? Como definila?
De onde, afinal, ela vem? “O
verso é um doido cantando sozinho./
Seu assunto é o caminho.
E nada mais!/ O caminho
que ele próprio inventa”, responde
Mário Quintana em um pequeno poema
de “Preparativos de viagem” (Alfaguara), livro
organizado por Italo Moriconi. O poema se chama
“O verso”. Em outro, “Música”, Quintana tenta
mais uma definição para o material de trabalho
do artista. “O que mais me comove em música/
são essas notas soltas/ — pobres notas únicas
—/ que do teclado arranca o afinador de pianos”.
Um afinador de pianos não tem um plano a seguir,
ou uma partitura a executar. Luta com as
notas tentando encaixá-las em seus lugares da
escala musical, mas enquanto luta produz estranhos
grunhidos. Gritos das notas, que não se
deixam domar. Restos da música, que enfim são
aquilo que dentro dela se guarda, aquela desordem
original de onde os sons provêm.

Lírica, a poesia de Mário Quintana se debruça
sobre as coisas do mundo para delas arrancar
sons. Delas arrancar poesia. O poeta trabalha com
materiais estranhos, que desconhece e que o desafiam.
Só o poeta? Diante de um espelho, Quintana
medita: “Esse estranho que mora no espelho/
Olha-me de um jeito/ De quem procura recordar
quem sou...”. O desconhecido e a ignorância não
são obstáculos, mas armas. Eles alimentam o poeta
— um homem qualquer, embora grave — e lhe
servem de combustível para a escrita. Podemos ler
em outro poema, “Extraterrena”: “Nós colhíamos
flores de hastes muito longas/ E cujos nomes nem
ao menos conhecíamos.../ E nem sequer, também
sabíamos os nossos nomes...”. Nesse ambiente nublado,
semelhante ao daquele que desembarca
em outro planeta, as palavras se mexem e fazer
sentido. Elas se alinham, se agarram, formam cadeias
e poemas.

É tudo muito precário. Exige muita destreza de
quem manipula. No “Haikai de outono”, ele se pergunta:
“Uma borboleta amarela?/ Ou uma folha
seca/ Que se desprendeu e não quis tombar?” A poesia
é um bicho limítrofe, que rasteja entre dois
mundos. Um pouco para lá, um pouco para cá, e para
lá novamente. É um balanço, um ritmo, uma dança
com as palavras. Em “Aeroporto”, o poeta nos leva
a ver que temos todos nomes deslocados, nomes
falsos, e que só uns poucos de nós merecem “nomes
verdadeiros”. No mais, temos todos “um nome reconhecido
apenas pelos anjos./
Mas eu reconhecerei o meu nome/
Como reconheço no espelho
a minha imagem/ de cada dia”.

O poeta trabalha na dobra: um
conhecer que é, ao mesmo tempo,
desconhecer. Uma descoberta
que é, ao mesmo tempo, susto.
Nessa fronteira, as coisas se
misturam e se incluem. “Pois
minha alegria inclui, também,
minha tristeza”, ele escreve. O saborear
das palavras abrange,
também, o conhecimento de sua futilidade. Está
em “O visitante matinal”: “Para que nomes? Era
azul e voava...” O poema começa e acaba aqui. A
coisa em si lhe basta, o nome parece um adorno
exagerado.

Contudo, um poeta continua a escrever. Sempre.
É sua sina e destino. Uma certeza secreta o guia:
depois do Apocalipse, ficarão as palavras. Um dia,
imagina ele, uma peste acabou com todos os homens
do planeta. Restaram só as bibliotecas. “E
nelas estava meticulosamente escrito/ o nome de
todas as coisas!” O poeta arremeda, aqui, a sina de
Arthur Bispo do Rosário, o artista que se sentia
obrigado a colecionar uma peça de cada coisa
existente para que elas sobrevivessem ao fim do
mundo. Fixar para perdurar.
Emoldurar (escrever) para não
morrer. A palavra como um sinônimo
de eternidade. No mais,
sobra uma memória em farelos,
como mais coisas trancadas do
que abertas. “De minha vida, o
que me lembro/ É uma/ Sucessão
de janelas fechadas...” Interessa
mais ainda o arremate:
“Nalgum país de sonho...” A memória
(sonho) feita de imprecisões.
Sutilezas. Toda poesia é
sutil, ou não é poesia. Existem sempre muitas janelas
fechadas no caminho de um poeta; mas ele,
em vez de se espantar, escreve.

A poesia, nas mãos de Quintana (1906-1994), era
um instrumento para borrifar lirismo sobre a realidade.
De coisas do mundo, comuns, rasteiras, ele fazia
coisas elevadas. Da banalidade, desentranhou
grandeza. É uma poesia flutuante, que fica a meio
caminho entre o sonho e o real. Ele mesmo nos diz
em “Poesia”: “Às vezes, tudo se ilumina de uma intensa
irrealidade/ E é como se agora este pobre,
este único, este efêmero instante do mundo/ Estivesse
pintado numa tela”. O efêmero — como um
pássaro enfim detido em uma frágil gaiola — enfim
retido nos limites das palavras. Só assim conseguimos
vê-lo. Vê-lo? Vislumbrá-lo. Senti-lo apenas,
talvez só. Fica para o poeta a mesma pergunta
que ele faz a Deus, em “A rede”: “Senhor,/ Que
buscas tu pescar com a rede de estrelas?” Não há
resposta. A poesia não inclui respostas e é isso —
esse silêncio cósmico — que o poeta deve suportar
para escrever.

Ali, o poeta reconhece o grande abismo entre as
duas partes do mundo que, com a palavra, ele luta
para unir. Um gato (em “O gato”) olha o poeta. Fita-
o. “Fitamo-nos”. Um abismo — exatamente ali
onde a poesia se estende, imensa rede — se abre
ele entre eles. Escreve Quintana: “Como duas criaturas
incomunicáveis e solitárias/ Que fossem feitas
cada uma por um Deus diferente”. Pois é isso, a
diferença, a matéria da poesia. Sem diferença, não
há poesia. Sem entre rasgão no Um, não há lugar
para a palavra e sua costura. Nas mãos de Mário
Quintana, o lirismo é a linha com que ele cose o
mundo e o conecta ao sublime.

Registra sua origem: “Venho do fundo das
Eras,/ Quando o mundo mal nascia”. Ao longo
dos séculos, a persistir sempre na mesma costura
delicada. “Sou tão antigo e tão novo/ Como a
luz de cada dia”, ele continua em “O poeta”. É o
tempo que se rasga ali onde a poesia surge. Passado
e futuro se atrelam no presente sutil da palavra
poética. Por isso mesmo, já não importa saber
que Quintana já está morto: sua voz continua
a reverberar pelos espaços do mundo, indiferente
ao ritmo dos relógios. No fundo, como nos diz
no comovente “O tio”, dedicado a um tio que
nunca teve: “É tudo sombra vã que agita o vento”.
A poesia, mostra Quintana, espalha sua manta
de vento sobre a eternidade para lhe moldar um
corpo amoroso.

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