Estado de Minas: 21/12/2013
Presidente Mujica dá uma lição consequente de liberdade de direitos humanos ao mundo |
Um dos fenômenos que vêm chamando a atenção da sociedade brasileira é a invasão de shopping centers por jovens, perturbando a falsa paz social que reina nos galpões de lojas espalhados pelo país. O evento ganhou o nome de rolezinho. Uma espécie de ocupação legítima do espaço por novos personagens sociais até então dotados de invisibilidade social.
A sociedade brasileira sempre foi criativa em matéria de exclusão. Não precisamos de apartheid legal, pois as ferramentas simbólicas cumpriam esse papel. Sem leis ou cartazes, havia uma fronteira imaginária que foi sendo transposta aos poucos. Quem não se lembra do mal-estar da classe média quando os aeroportos começaram a receber novos viajantes?
O Brasil é o único país do mundo que tem elevador de serviço para separar pessoas por classes, funções e cor. E não é só isso: muitas empresas se esmeram em construir elevadores privativos pelo único e exclusivo medo de fazer conviver no mesmo espaço os dois lados do clássico binômio capital/trabalho.
A mesma sanha excludente pode ser observada em vários espaços sociais, como os condomínios fechados, que impedem a livre circulação de pessoas, ou o direito constitucional de ir e vir, em nome de uma pretensa segurança. Aliás, esse mesmo medo da violência deu a shoppings o papel de rua e praça que sempre foi cumprido pelas… ruas e praças. Com temor da vida real, as pessoas criaram espaços artificiais que têm praças (de alimentação) e ruas (de lojas). E expulsaram de lá a diferença.
O fenômeno do rolezinho é apenas a expressão de uma nova realidade política. No entanto, as interpretações são quase sempre empurradas para a sociologia ou para o comportamento. O que está em ação é um novo patamar de autorreconhecimento do cidadão como portador de direitos, e não apenas como consumidor.
Que o fato mostre sua dimensão num centro de compras é duplamente significativo: reforça a dinâmica do consumo como forma de expressão e expõe a ilegitimidade das estratégias de divisão dos espaços sociais. Depois de ocupar as praças do mundo, nada mais natural que ocupar as praças dos shoppings.
Há um equívoco de base nessa história. Para parte dos intérpretes sociais, trata-se da emergência de uma nova classe média. Está errado, pelo menos conceitualmente. Os novos habitantes de centros de compra e aeroportos não são da classe média, o que indicaria posição mais próxima do capital, mas classe trabalhadora que autopostula direitos em razão da melhoria do consumo. O consumo não é a ponta do sistema, mas uma estratégia de localização. A classe social não é definida pelo consumo, mas o consumo aproxima comportamentos sociais de classes distintas.
Para entender a diferença, basta analisar como se comportam os jovens de diferentes classes sociais na mesma operação de consumir em um shopping. Os dois grupos se movimentam coletivamente, possuem códigos próprios, expressam-se por meio das marcas que consomem. No entanto, a relação com o consumo é distinta. Um grupo reafirma sua distinção; o outro emula para não se distinguir. O primeiro reclama de falta de segurança; o outro sofre nas mãos dos seguranças.
O período do Natal é sintomático para compreender essa situação. A festa que tem raízes religiosas, todo mundo sabe, há muito foi assumida pela lógica do consumo. Não se trata apenas de estimular as compras, mas de traduzir o sentido espiritual por um substrato material. O que era para ser uma aproximação de dinâmicas celestiais se torna um inferno.
No entanto, é curioso como os consumidores, sempre que perguntados por repórteres, afirmam que vale a pena passar pela provação das compras, pois é uma forma de expressar o amor aos filhos e parentes. O consumismo não precisa ser apenas tradução material do afeto, mas deve carregar todos os elementos morais da oferta do dom ao ser amado: o trabalho para ganhar dinheiro (mesmo que se traduza em distância dos filhos) e a provação das compras (mesmo para desagradar por definição o presenteado, que sempre quer mais do que ganha – afinal, não se trata de um aparelho eletrônico de última geração, mas de amor).
O consumismo não faz bem ao indivíduo, não é um motor eficiente para a economia (pela necessidade de obsolescência programada), não é uma base moral para a sociedade. Ao investir contra os liames de solidariedade em favor de distinção, o consumismo evidencia o que o homem tem de pior e menos solidário. Uma das traduções desse processo de divórcio social é a criação, no seio de uma sociedade mais dividida, de novas lâminas que cortam os grupos sociais: as áreas vips, os fura-filas, os cartões especiais, os clientes de agências prime etc.
Os rolezinhos e seus atores não são o avesso do mundo do consumo, mas seus mais fiéis apóstolos.
Fumaça A decisão do Uruguai de permitir o consumo da maconha em seu território, seguidas as diretrizes da lei (forma de produção, distribuição e quantidade por pessoa), é um exemplo que merece reflexão em todo o mundo. Fora da histeria proibitivista e do libertarismo inconsequente, o país dá uma lição a nações, como a Holanda, que já tentaram a liberação sem atentar para aspectos que fazem a diferença. O Uruguai não chegou à liberação pela evidência do fracasso das políticas de proibição, mas como consequência de ações no âmbito dos direitos humanos, que obrigaram ao responsável processo de tirar do usuário a pecha de criminoso.
No Brasil, que começa a falar da liberação como alternativa séria, a situação ainda está distante exatamente pelo acercamento criminal da questão. O Uruguai soube tratar a droga como uma questão humana, que diz respeito ao desejo e suas incontroláveis consequências. Nosso país não consegue efetivar uma política de descriminalização exatamente por seguir as diretrizes do crime e da economia. Para nós, a droga não é uma inclinação controlável, mas um bom negócio. Quanto mais proibido, melhor.
O Uruguai é um país pequeno, mas pensou grande e se preparou para dar esse passo, que certamente terá resultados eficientes a longo prazo. Quanto ao Brasil, a continuar na mesma onda moralista, deverá seguir discutindo sobre internação compulsória e cracolândia como campo de extermínio de pobres. A liberação responsável do consumo da maconha é um avanço inegável. Atraso é apostar na repressão e incentivar o crime organizado. Onde há fumaça há fogo. Prometeu roubou o fogo e desagradou os deuses. O Brasil precisa desagradar os traficantes.
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