quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

O fantasma da peste negra‏ - Bruna Sensêve

O fantasma da peste negra 
 
Estudo mostra que as três pandemias da doença que atingiram grande parte do planeta em diferentes épocas foram causadas por subtipos distintos da bactéria Yersinia pestis 
 
Bruna Sensêve
Estado de Minas: 29/01/2014


Brasília – Três pandemias e centenas de milhões de pessoas mortas, tudo por causa de uma minúscula bactéria. Até agora, estudos mostraram que o mesmo bacilo, o Yersinia pestis, foi responsável pela praga de Justiniano, no século 6; pela peste negra, que dizimou um terço da população europeia na Idade Média; e pela Terceira Pandemia, uma nova investida da doença que fez vítimas principalmente na Ásia. No entanto, uma nova pesquisa, publicada ontem pela revista especializada Lancet Infectious Diseases, mostra que cada um desses eventos foi causado, na verdade, por subtipos (cepas) diferentes do bacilo. Os dados são importantes por indicarem que a enfermidade pode voltar a afetar os seres humanos caso surja uma nova variante com essa capacidade, embora o mundo esteja muito mais bem preparado para enfrentar uma ameaça desse tipo (leia Palavra de especialista).

Entre os anos 541 e 543, a praga de Justiniano, considerada a primeira das três pestes pandêmicas em humanos, se espalhou a partir da Ásia Central ou da África para o Mediterrâneo e a Europa, matando um número estimado de 100 milhões de pessoas e contribuindo para o fim do Império Romano. A pandemia marcou a transição do período clássico para o medieval. Surtos subsequentes de oito a 12 anos ocorreram de forma cíclica pelos dois séculos seguintes.

Algumas incertezas sobre o histórico da doença levaram alguns pesquisadores a sugerir que outro patógeno tivesse sido o causador dessa peste, como um vírus da gripe. Contudo, os sintomas descritos por Procópio, estudioso da época, eram muito semelhantes aos relatos da peste negra. E, por fim, o sequenciamento de regiões genômicas específicas do Y. pestis, a partir de material esquelético de vítimas enterradas na França e na Alemanha, acabou confirmando a relação do bacilo com a praga de Justiniano. Faltava, porém, uma caracterização genômica detalhada das cepas que causaram a primeira pandemia e sua relação com as pragas seguintes, o que levou à realização da nova pesquisa e ao seu surpreendente resultado.

Dentes Um time internacional liderado pelo geneticista evolucionário Hendrik Poinar, da Universidade de McMaster, no Canadá, analisou partes do genoma de Y. pestis obtidos de dois indivíduos encontrados no cemitério medieval de Aschheim-Bajuwarenring, na região da Bavária (Alemanha). O método de datação por radiocarbono confirmou que as duas vítimas morreram na época da primeira pandemia. Dentes dos dois indivíduos foram removidos, e o DNA encontrado foi isolado para, em seguida, ser feito o sequenciamento das cepas do bacilo.

Os genomas foram então comparados com um banco de dados com 131 cepas da bactéria coletadas a partir de vítimas da segunda e da terceira pandemias. A comparação possibilitou a construção de uma árvore filogenética, com a probabilidade máxima evolutiva de cada subtipo. “A árvore filogenética contém um novo ramo que leva às duas amostras da bactéria que causou a praga de Justiniano. Esse ramo não tem representantes contemporâneos conhecidos e, portanto, é extinto ou sem amostragem em reservatórios de roedores silvestres atuais. Ele é intercalado entre dois grupos existentes na filogenia e está distante da cepa associada com a segunda e terceira pandemias”, explica Poinar.

O trabalho extremamente detalhado mostra que as linhagens que causaram a primeira pandemia e a peste negra 800 anos mais tarde surgiram de forma independente uma da outra, a partir de roedores, e contaminaram seres humanos. Os pesquisadores sugerem que as espécies roedoras em todo o mundo representam importantes reservatórios para o aparecimento repetido de diversas linhagens de Y. pestis em populações humanas.

Dúvidas Os pesquisadores ressaltam que não está claro ainda se as cepas da primeira praga eram ancestrais diretas das cepas da peste negra. Outra pergunta a ser respondida é se essa bactéria assolaria a humanidade com ondas de surtos divididas por centenas de anos ou se formou novas linhagens que atacaram a humanidade separadamente. Da mesma forma, é incerto se a segunda e a terceira pandemias eram resultado de surgimentos contínuos de uma cepa pandêmica ou novas cepas de diversos reservatórios de roedores – principal hospedeiro do Y. pestis. “O interessante desse estudo é que ele levanta ainda mais perguntas que nos dá respostas”, avalia Anderson Ferreira Cunha, professor do Departamento de Genética e Evolução da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Para Cunha a grande pergunta é: por que aquela bactéria que atacou os seres humanos durante o Império Romano morreu, mas a Y. pestis das outras pandemias é encontrada até hoje? O professor conta que, aparentemente, algum importante fator fez com que a primeira cepa sumisse. Uma das hipóteses é a adaptação a um novo ambiente ou mesmo a presença de hospedeiro que estava mais adaptado ao ambiente, fazendo com que a bactéria não tivesse como se instalar.

“A linhagem que surgiu na praga de Justiniano não foi combatida e, ainda assim, desapareceu.” A seguinte não, mesmo que muito parecida com a anterior. “O que ocorre muito é o surgimento de novas cepas resistentes a uma droga, como acontece hoje com a tuberculose”, lembra Cunha. Ele diz que isso pode ter ocorrido na época, logicamente sem referência a drogas, mas quanto ao hospedeiro, seja ele o rato ou mesmo o humano. “Ele desenvolve anticorpos contra o patógeno, que desaparece.”

Mutações

Cepa ou estirpe é um termo da biologia e da genética que se refere a um grupo de descendentes com um ancestral comum que compartilham semelhanças morfológicas ou fisiológicas. Quando uma espécie sofre mutações significativas ou novas gerações se adaptam ao ambiente, os descendentes podem formar uma nova cepa. Por exemplo, o H1N1 é uma estirpe do vírus da gripe que ficou famosa por causar sintomas mais fortes.

Doença do presente

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo Global de Combate à Aids, à Tuberculose e à Malária afirmaram, no fim do ano passado, que as cepas de tuberculose com resistência a múltiplas drogas estão se espalhando amplamente pelo mundo. A tuberculose costuma ser vista como uma doença do passado, mas o surgimento de cepas resistentes a várias drogas fez com que ela se tornasse na última década um dos mais prementes problemas sanitários do planeta. A doença é causada pela bactéria Mycobacterium tuberculosis, o bacilo de Koch. De acordo com a OMS, em 2011, 8,7 milhões de pessoas contraíram a enfermidade, e 1,4 milhão delas morreram a doença. A OMS diz que até 2 milhões de pessoas poderão estar contaminadas com cepas resistentes até 2015.

Palavra de especialista
Eduardo Tarazona, professor de genética do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais
Boas condições de vida

“Cada pandemia foi causada por uma cepa diferente, ainda que pertencente à mesma espécie. Em momentos diferentes, cepas diferentes não tão próximas entre si conseguiram infectar humanos e infectar uns aos outros. Como ocorreu três vezes, pode acontecer de novo, ou seja, existe a possibilidade de que, entre todas essas bactérias, haja uma mais adaptada à vida dos humanos e que os antibióticos não combatam imediatamente. Claro que hoje temos melhores condições de vida e, provavelmente, conseguiríamos controlar melhor a pandemia, mas é possível que apareça outra cepa com capacidade de infecção. Ao longo do tempo, esses micro-organismos evoluem, e, caso algumas mutações façam com que as cepas se tornem particularmente bem adaptadas sobre os humanos, surgem as pandemias.”

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