sábado, 18 de janeiro de 2014

Por trás dos panos - Marcel Singer

Por trás dos panos 

Estudo do ator e diretor Sérgio Viotti, O teatro de Shakespeare traz leitura inspirada das principais tragédias e comédias do autor de Romeu e Julieta 
 
Marcel Singer
Estado de Minas: 18/01/2014


O ator Michael Bertenshaw em montagem de Henry VIII, de Shakespeare, no Globe Theatre, em Londres (Luke MacGregor/Reuters)
O ator Michael Bertenshaw em montagem de Henry VIII, de Shakespeare, no Globe Theatre, em Londres
 Quem acompanha o cenário do teatro, cinema e televisão no Brasil não deve ficar muito impressionado com o nível cultural dos jovens artistas, definidos mais pelos atributos do corpo do que pelos do espírito. Não é assim em todo o mundo e nem sempre foi assim no Brasil. Os grandes atores e atrizes brasileiros, como os ingleses e franceses, sempre se destacaram pela cultura, como Paulo Autran e Fernanda Montenegro. Entre os profissionais do palco que melhor expressam essa tradição está Sérgio Viotti (1927-2009), do qual acaba de ser lançado o livro O teatro de Shakespeare (Martins Fontes).

Viotti, além de ator que ficou conhecido pelos papéis em novelas de TV (outro traço do bom profissional é não desprezar papéis e veículos), foi também tradutor e adaptador de obras literárias e de dramaturgia. Sua formação inclui passagem por Londres, nos anos 1950, onde trabalhou na BBC, gravou peças e escreveu críticas de dança e ópera. Vem dessa época a aproximação com os círculos shakespearianos ingleses e o contato com atores clássicos.

De volta ao Brasil, em 1958, Sérgio Viotti vai participar de várias montagens, entre comédias, dramas e musicais, ganhando importantes prêmios, entre eles o Molière, em 1967. Seu talento múltiplo se volta ainda para a literatura, com a publicação do romance E depois nosso exílio, que recebeu o prêmio Walmap, um dos mais importantes da época. Ao todo, publicou oito livros, entre romances e peças de teatro. Em 1991, Sérgio Viotti leva ao palco a montagem As idades do homem, uma espécie de compêndio de trechos shakespearianos, que deu vazão a seu conhecimento privilegiado da obra do bardo.

O livro O teatro de Shakespeare, de certa forma, fecha o arco de talentos do ator, escritor e diretor, demonstrando desde a sensibilidade literária até o conhecimento dos bastidores históricos das peças comentadas. É trabalho de homem de teatro, mas que sempre evidencia uma leitura erudita e informada da obra shakespeariana. Parte do material foi reunido a partir de textos escritos para cursos, seminários e conferências, o que explica a preocupação didática com a clareza e a busca de contexto histórico que deixe tudo mais compreensível.

O teatro de Shakespeare parte da vida para chegar à obra. Nos primeiros capítulos, Viotti sintetiza os elementos distintivos da Inglaterra quinhetista, com informações sobre história, política e comportamento. Ao tratar da educação do ator e dramaturgo, o autor desfaz a falsa impressão de que Shakespeare teria sido um intuitivo genial, mostrando sua inserção num sistema educacional que primava pelo estudo da gramática, da história, e da cultura clássica, inclusive com fundamentos de grego e latim.

Viotti segue acompanhando a trajetória do poeta, do abandono dos estudos à mudança para Londres e a entrada no teatro, inclusive a convivência com outras trupes. O mundo do teatro, como revela Sérgio Viotti, era rico em substância humana e política, com questões interessantes como polêmica em torno da presença das mulheres e a exploração dos temas históricos e religiosos. Antes de passar ao estudo das peças, ele analisa a vocação do bardo para a poesia, estudando obras como Vênus e Adônis e O rapto de Lucrécia, chegando aos enigmáticos sonetos.

NO PALCO
Os capítulos mais importantes do livro tratam das comédias (em três partes) e das tragédias. Sérgio Viotti estuda 16 peças de Shakespeare, com método próprio de homem de teatro. Em primeiro lugar situa o contexto da obra, em seguida passa em revista o acúmulo dado pela tradição, para, então, entrar no território propriamente dramático. Para cada peça, de A comédia dos erros a Tito Andrônico, Viotti analisa os elementos literários, poéticos e dramatúrgicos, destrinchando trechos e interpretando cenas mais conhecidas. Uma aula de teatro.

Entre as seções dedicadas às comédias e tragédias, se situa o curioso – e erudito – capítulo “Os homens que foram Shakespeare”. Nele, Sérgio Viotti traz à tona o antigo debate sobre a existência de William Shakespeare e a atribuição da autoria de suas peças. O argumento é que um homem de teatro não teria condições de escrever obra de tal profundidade. O jogo, que foi sendo desenrolado pelos tempos afora, buscava identificar quem se esconderia por trás da persona de Shakespeare.

Sérgio Viotti estuda várias especulações, entre elas as que pretendem que o autor das peças tenham sido vários: Francis Bacon, Christopher Marlowe, Roger Manners, William Stanley e Edward de Vere. E conclui: “Na verdade, não se trata de pensar quem foi Shakespeare. Que ele existiu, não há dúvida. O que interessa, realmente, é o que diz o grande personagem Hamlet: ‘The play is the thing!’ (A peça é a essência). E quem a escreveu foi um homem chamado Shakespeare”.

O teatro de Shakespeare é um livro útil e inteligente. No entanto, merecia um cuidado editorial indispensável: a identificação das traduções analisadas pelo autor e notas que facilitassem o acesso às citações feitas por Viotti ao longo de seu trabalho. No caso de um autor como Shakespeare, as diferentes leituras e traduções fazem parte da trajetória do texto. E para o estudioso do teatro, se torna um recurso indispensável. Além disso, a origem do material – disperso em muitas fontes – cria inevitáveis repetições. Nada que uma nova edição não corrija.


O teatro de Shakespeare
De Sérgio Viotti
Editora Martins Fontes
376 páginas
R$ 47,50

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