Valor Econômico 21/02/2014
É seguro dizer que a poeta, cantora e musicista americana Patti Smith era a única pessoa de Greenwich Village, em Nova York, que sabia que a data da nossa entrevista (6 de janeiro) era também o dia do aniversário de Joana d'Arc. Uma imagem da estátua dourada de Emmanuel Fremiet na Place des Pyramides, em Paris, com a heroína encouraçada erguendo a flor de lis, aparece em seu volume de fotos branco e preto. Há muita coisa na poesia e na música de Patti Smith que sugere uma afinidade com a Donzela de Orléans: também uma guerreira, possuída por visões e sintonizada com a música dos anjos.
Foi por meio da necessidade premente de exprimir poesia de maneira sonora, em vez de mantê-la recatadamente na folha de papel, que Patti se tornou cantora. De qualquer maneira, as palavras são o que mais importa. Quem duvidar de que Patti Smith tem méritos como escritora vigorosa deveria abrir "Só Garotos" (Companhia das Letras, tradução de Alexandre Barbosa de Souza), a história de sua amizade amorosa com o artista Robert Mapplethorpe na virada dos anos 1960 para 1970, antes de qualquer um dos dois ser famoso. Qualquer parágrafo dirá aos céticos que os jurados do National Book Awards não estavam lhe dando o prêmio por simples surpresa de que uma roqueira tinha capacidade de formar uma frase extraordinária.
Um dia antes de sua morte, Mapplethorpe (1946-1989) lhe pediu que escrevesse a história deles, e ela dissera que faria isso. Mas, sem nenhuma experiência em escrever uma obra tão extensa quanto um livro, ela precisou de 20 anos de imersão e emersão em suas provações e tragédias para finalizá-lo. "Foi difícil porque eu queria escrever um livro que tivesse substância verdadeira para o leitor habitual, mas também recebesse bem o não leitor", diz ela - especialmente porque Mapplethorpe nunca foi muito de ler.
O resultado não é só a maturidade como um relato profundamente comovente marcado por amargo autoconhecimento; perspicaz, nada sentimental, mas carinhoso. "A gente ria das nossas pobres personalidades, dizendo que eu era uma menina má que tentava ser boa e que ele era um rapaz bom tentando ser mau. Ao longo dos anos esses papéis seriam trocados, depois trocados de novo até que viemos a aceitar a natureza dupla de cada um de nós. Contínhamos princípios antagônicos, claros e escuros."
É necessário se acostumar com o benevolente humanismo e a empolgação infantil pela vida que é parte do seu modo de ser
O banco de lembranças de Patti é um armário de suvenires, cada objeto captando um momento ou lugar. "Algumas ajudam a gente, algumas são mágicas", diz. Uma série deles aparece em "Dream of Life" (2008), o documentário de Steve Sebring: o vestido de infância preferido; o tamborim de pele de cabra feito por Mapplethorpe para o 21º aniversário dela. Ela também se lembra com exatidão das palavras trocadas entre ela e seu companheiro. Diz que isso se deve ao fato de Mapplethorpe não apenas não ler muito como também não falar muito. "Ele era um ouvinte. Quando ele falava, tinha o que dizer... Quando terminávamos uma obra de arte, não estava interessado em nenhum tipo de análise espacial ou coisa do tipo. Era apenas 'está bom ou não?'." Quando desenhava e estava indo bem, dizia a Patti que estava "de mãos dadas com Deus".
Se o comentário de Mapplethorpe soa um pouco como William Blake, não é por acaso. Atualmente Patti está cheia de literatura. Mesmo a alegre "April Fool", com seu ritmo contagiante, do álbum mais recente ("Banga"), é uma saudação a Gogol, cujo gênio cômico chegou ao mundo num dia desses. Nossa conversa visita sua galeria de heróis: William Burroughs, Allen Ginsberg (que deu em cima dela, até descobrir que ela era uma garota), Bob Dylan, além de seu modelo de perfeição de longa data, Arthur Rimbaud. Mas nenhuma figura de seu panteão tem mais importância para ela do que Blake. Ela fotografou sua máscara mortuária e visitou seu túmulo.
A exemplo de tantas famílias americanas que decaíram na escala social, os Smith cuidaram que seus filhos tivessem acesso ao tesouro representado pelas palavras, junto com o que ela chama "o brilho da imaginação" em "Só Garotos". "Silver Pennies", uma antologia de poemas, tornou-se um bem precioso. Suas páginas incluíam poemas de Yeats e de seu correspondente Vachel Lindsay, "o trovador da Prairie", para quem a poesia não tinha valor se não pudesse ser cantada.
Ela já tinha sido conquistada pela "rude simplicidade" de Lindsay e de Blake e por sua amplificação da voz do homem comum. E Blake tinha mais uma coisa que ela admirava: a pintura e o desenho com que dispunha as palavras, a determinação simples de fazer tudo, desde começar a escrever até ter o resultado impresso. "Eu mesma tinha uma inclinação por fazer várias coisas ao mesmo tempo. Queria desenhar, escrever, falar."
Os professores testemunhas de Jeová de sua escola dominical fizeram o máximo para despi-la dos sonhos. Previsivelmente, a austeridade deles teve o efeito contrário. Aos "12 ou 13... me apaixonei pela arte como profissão" e fiz a "escolha consciente" de rejeitar a religião organizada. Ela já estava possuída pela necessidade de escrever, "não egoisticamente, mas como um tipo de agradecimento... para pôr mais um volume na prateleira da biblioteca". (Não surpreende, portanto, saber que ela não é uma usuária do Kindle). Em Nova York, virando-se com a mixaria que ganhava com o emprego numa livraria - "Eu era muito desembaraçada; Robert estava sempre preocupado com dinheiro" -, teve momentos de dúvida sobre se conseguiria ser poeta.
Mapplethorpe, por outro lado, tinha certeza de seu destino artístico. O que não tinha certeza era de sua sexualidade. Os dois se separaram. Patti foi para Paris seguindo o fantasma de Rimbaud. Quando viu Mapplethorpe de novo em Nova York, estava um caco ambulante. Voltaram de forma precária e se mudaram para o hotel Chelsea, que se tornou para eles, como para tantos outros, o seminário das possibilidades. Ela vivia encontrando pessoas que acreditavam e ajudavam: o ator/dramaturgo Sam Shepard, Burroughs e Ginsberg, que personificavam para ela a poesia do discurso direto, versos das entranhas. Enquanto começava suas leituras em espaços hospitaleiros, atualmente canonizados como incubadeiras do punk - o Max's Kansas City e o CBGB's -, ela notou que o público ficava inquieto com a lenga-lenga dos poetas. "Era meio chato." Ela não queria ser chata.
Patti fala do momento, de meados da década de 1970, como um despertar vocacional. "Havia um movimento, uma linha direta entre o rock'n'roll dos anos 60 e 70 traçada por pessoas que queriam elevar seu nível - Jim Morrison, Neil Young, Hendrix, Lennon, Grace Slick. Todos tinham tanta inteligência e pegaram o que Bo Diddley tinha começado e elevaram aquilo, elevaram aquilo... Quando eu comecei a cantar, não foi para ser uma estrela do rock, mas para contribuir para manter aquela continuidade. Hendrix e Morrison tinham morrido. As coisas estavam mudando, e bastante; eu estava preocupada com a possibilidade de a tocha não ser passada, de que a luz se dissiparia. Sei que isso soa arrogante, um pouco grandioso para uma garota do sul de Jersey, mas essa gente, o que eles faziam, era tão importante, era a grande contribuição americana. Eu queria ser a turrona que chama a atenção para o problema até aparecer alguém para ajudar."
"Esse alguém foi você", digo, "você e Springsteen". "Ah", exclama ela, "Bruce estava fazendo as coisas dele. A gente veio de partes diferentes de [Nova] Jersey; ele é do centro ou do norte do Estado, eu sou do sul, da Jersey rural - terra dos primeiros colonizadores e das fazendas de criação de porcos." Quando lhe pergunto se trabalhou conscientemente a entonação de voz que deu em "Horses" (1975) e em "Easter" (1978) - o assobio, a fala arrastada, o lamento ao pé do ouvido -, ela volta a rir e diz que não, que não sabia fazer diferente. Cantava de forma nasal porque "tinha respiração pouco profunda" e porque aquilo era apenas o som do sul de Jersey. "Todo mundo pensava que eu era uma caipira."
Quando começou as leituras de poesia em casas que foram incubadeiras do punk, Patti Smith notou que o público ficava inquieto
Mas uma caipira que tinha cabeça para levar Blake, Whitman e Yeats a sério. Atribui à sua ligação com o pianista Richard Sohl o mérito de reunir as várias Pattis, especialmente porque, como ela, ele não era uma pessoa arrogante do rock'n'roll, aliás, nenhum tipo de pessoa arrogante. Com formação clássica, "ele adorava canções de musicais [que viraram sucessos independentes]".
Continuou sendo ela mesma. Em 1980, Patti se casou com Fred "Sonic" Smith, do MC5, assumiu uma feição mais política e escreveu com ele "People Have the Power". A política não veio naturalmente, diz, mas ela trabalhou na campanha de Robert Kennedy por uma vaga no Senado. Quando ele foi assassinado, ela se retirou do universo da política, e isso levou o mais ativista Fred a reavivar nela os instintos políticos/combativos. "Como era de costume, consultava Blake e a Bíblia. 'Os dóceis herdarão a Terra'. Certamente compreendi isso."
Ao se interessar por São Francisco e ao fazer uma peregrinação informal a Assis, Patti considerou um certo milagre surgir um papa que adotou o nome e, aparentemente, a doutrina social que ele envolvia. "Diziam que nunca haveria um papa jesuíta nem um franciscano. Agora, tem-se ambos."
De vez em quando a velha fúria volta. Ela se lembra com silencioso desprezo da virtual conspiração de silêncio da mídia quando um protesto contra a Guerra do Iraque, com cem mil pessoas, quase não recebeu cobertura. Embora tenha ficado feliz com a eleição de um afro-americano para a Casa Branca, a exemplo de milhões de outras pessoas de esquerda, ela não o perdoou por manter Guantánamo em funcionamento e por persistir na guerra no Afeganistão. "Para mim ele é exatamente igual a um bom republicano." A cultura "materialista, movida a celebridades" a entristece, principalmente quando vê "criancinhas de 3 anos sendo consoladas por telefones celulares e videogames, em vez de contarem histórias a elas".
A destruição permanente do meio ambiente a enche de uma aflição ainda mais desoladora. Com um leve suspiro, volta a Blake. "Mais do que nunca, quanto mais velha fico, mais consigo sentir a dificuldade de ser ele - uma vítima da Revolução Industrial, quando ele está sentado em casa colorindo à mão gravuras de pastores."
Mas é aí que, diz, afastando o desânimo: "Sou, mesmo assim, uma pessoa muito otimista. Continuo a trabalhar com alegria". Vem à mente a melodia de Beethoven. A primeira ópera que viu foi "Fidélio", obra que se harmonizava tão perfeitamente com seu temperamento que quis fazer um filme baseado nela. "Sei quais seriam as tomadas de abertura. Sou Eleonora/Fidélio, com cabelo comprido até a cintura. Pego a tesoura e corto-o."
É necessário se acostumar, de alguma forma, com o benevolente humanismo e a meticulosa empolgação infantil pela vida que é uma parte do modo de ser de Patti Smith tanto quanto a sua fúria visceral. Mas qualquer pessoa que sobreviveu à sucessão de duros golpes que a atingiram com impiedosa brutalidade a partir do fim da década de 1980 inevitavelmente mudaria de alguma maneira - ou perdendo-se para a escuridão ou banhando-se por nova luz. Mapplethorpe foi apenas o início de uma série de perdas. Em 1990, aos 37 anos, o músico Richard Sohl, aparentemente gozando de perfeita saúde, morreu repentinamente em decorrência do defeito não detectado de uma válvula do coração. Em 1994, seu marido, Fred, sucumbiu a uma longa doença - deixando-a viúva com duas crianças pequenas. Assim que seu irmão Todd se ofereceu para cuidar dela e das crianças, um AVC o matou.
Qual a dose de desgraça que uma pessoa é capaz de assimilar? Apenas o imperativo de cuidar de Jackson e de Jesse lhe deu a força necessária para suportar. Mas isso foi tudo o que conseguiu fazer. Do ponto de vista criativo, ela mergulhou num vácuo. A história de Mapplethorpe ainda não tinha sido escrita, mas ela também representava um convite à dor. "Tudo o que tentava me trazia de volta ao centro da dor." Mas um raio de luz escapou, por meio das lentes de uma câmera Land. Era uma arte instantânea, que quase não demandava esforço, e começou como uma foto de um par de velhas sapatilhas de balé de Nureyev. A música das coisas e, depois, dos lugares, começou a soar suavemente para ela. Mas Patti estava paralisada na capital automobilística americana com as crianças - possivelmente como a única adulta de Detroit que não aprendera a dirigir. Nunca tinha sido rica. Agora, sob todos os ângulos imagináveis, estava em má situação, precisando encontrar alguma maneira de ganhar o sustento. Aparece um anjo: Zimmerman (nome civil de Bob Dylan).
Em 1995, Dylan fazia uma turnê e convidou-a a acompanhá-lo. Ela ficou nervosa? "Ah, certamente. Não sabia se a plateia receberia bem a minha volta; nem sequer se iriam se lembrar de mim." O público recebeu-a bem e lembrou-se dela.
Aos 67 anos, o abraço de Patti Smith à vida e à arte nunca esteve mais apertado. Sua voz desenvolveu uma amplitude surpreendente, capaz de adequar-se a qualquer tom poético exigido por suas palavras. A elegia bluesística, rítmica, a Amy Winehouse ("This Is the Girl") é o tipo de coisa que a própria cantora, morta em 2011, teria adorado cantar. "Nine", escrita para seu amigo Johnny Depp, tem um toque da cantilena grave de uma gaita irlandesa na música.
As mulheres das décadas de 1970 e 1980 - Chrissie Hynde e também Debbie Harry - cuidaram mais da voz do que os homens. Bob Dylan mal passa de uma adenoide performática; a amplitude disponível da laringe de Tom Waits, retalhada por lâmina de barbear, está se reduzindo ao último fio. Mas Patti Smith - que em outros tempos queria ser uma cantora de ópera - desenvolveu a profundidade e a sutileza de sua voz e, quando precisa, consegue entoar um aveludado vibrato. Ela consegue passear por sua extensão vocal quando declama poesia também, como em "Maria", uma elegia para a atriz Maria Schneider que está no álbum "Banga". E não é que ela assumiu a suavidade. Nunca foi tão dura. Durona, ardorosa, forte, sensual e contundente, mas não dura.
Quando era criança, no sul de Jersey, sonhando sonhos verborrágicos e contando histórias ao irmão e à irmã, sua mãe cantava para eles a canção de Doris Day "Que Será, Será". E isso, apesar de tudo o que há de errado no mundo atual, e de todos os entes queridos que ela viu chegar e partir, ainda parece ser a maneira pela qual entende o mundo. Aquilo que for será. (Tradução de Rachel Warszawski)
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