quarta-feira, 5 de março de 2014

O amor é cego? - Carolina Braga

O amor é cego?


 Sucesso na Berlinale, o filme brasileiro Hoje eu quero voltar sozinho disputa prêmio na Colômbia. Trama sobre homossexuais tem grande capacidade de comunicação e abordagem delicada 

Carolina Braga
Estado de Minas: 05/03/2014


Fábio Audi e Ghilherme Lobo em Hoje eu quero voltar sozinho, representante do Brasil em Cartagena (Fotos: Lacuan Filmes/Divulgação  )
Fábio Audi e Ghilherme Lobo em Hoje eu quero voltar sozinho, representante do Brasil em Cartagena


Na opinião da crítica internacional, ele foi o melhor filme do Festival de Berlim. Saiu de lá consagrado com o Teddy, principal prêmio para produções com temática homossexual. Para completar, a estreia do longa brasileiro Hoje eu quero voltar sozinho no evento alemão lhe garantiu vendas para pelo menos 15 países – Estados Unidos, França, Alemanha, Reino Unido, Suíça e Romênia, entre outros.

Para o diretor Daniel Ribeiro, nada disso é mais importante do que a constatação a que chegou depois da primeira exibição na Berlinale: Hoje eu quero voltar sozinho comunica-se – e muito – com a plateia. “Ele poderia ficar fechado em meia dúzia de pessoas, mas, quando acabou a exibição, sentimos que havia uma coisa forte. No debate, o público parecia muito tocado”, conta. Hoje eu quero ... ficou em segundo lugar na preferência dos espectadores na mostra alemã Panorama, que contemplou 36 trabalhos de 29 países.

No dia 14, o longa será o único representante brasileiro na competição do Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias, na Colômbia, evento mais antigo do gênero realizado na América Latina. Depois, Daniel Ribeiro vai pensar só na estreia no Brasil, em 10 de abril. A expectativa, claro, não é diferente: provocar reflexão.

Em Berlim, Hoje eu quero voltar sozinho, história de um garoto deficiente visual que se apaixona por um colega, repercutiu na imprensa internacional por sua grande capacidade de comunicação. O filme não é panfletário, é delicado. Na justificativa apresentada pelo júri, os críticos o definiram como “a estreia alegre de um diretor que combina grande escrita, caracterização, desempenho, câmera e música para entregar um filme que se eleva acima do bem-explorado tema de idade, dando novo significado ao velho ditado ‘o amor é cego’”.

Daniel Ribeiro prepara o lançamento do longa no Brasil
Daniel Ribeiro prepara o lançamento do longa no Brasil

BANDEIRA

“É um convite ao diálogo, a bandeira que carrego”, ressalta Daniel Ribeiro ao se referir à temática que decidiu abordar. Aos 31 anos, o ex-aluno da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo tem dois curtas e esse longa no currículo. Nos três trabalhos, os protagonistas são homens que se relacionam afetivamente há algum tempo, como é o caso de Café com leite (2007), ou estão se descobrindo, como ocorre em Eu não quero voltar sozinho (2010) e em Hoje eu quero voltar sozinho (2014).

“Estamos falando de pessoas se apaixonando. Como pode haver restrição de direitos de uma coisa tão simples e bonita?”, questiona o diretor. Na faculdade, Daniel dedicou o trabalho de conclusão de curso à análise de personagens gays do cinema brasileiro. Ele estudou os longas Madame Satã, Amarelo manga, Bendito fruto e Amores possíveis, entre outras produções.

Seria natural que o primeiro longa de Daniel se impregnasse, de alguma forma, da pesquisa que vinha sendo feita por ele. “Em algum momento, parei para pensar sobre esse personagem cego, que nunca tinha visto homem e mulher, mas ainda assim se sentia atraído por outro cara. De onde vem o desejo, a atração?”, perguntou-se.

A partir daquele momento, Daniel resolveu usar o cinema para contestar lugares-comuns no campo dos relacionamentos. “Muita gente acha que a sexualidade está atrelada à visão. É um debate interessante sobre o preconceito. Saber não é um problema, mas ver incomoda”, diz. O diferencial é que em vez de focar apenas na origem do desejo ou na temática homossexual, o diretor universaliza a história para além das definições de gênero. Resumindo: todo mundo tem a experiência do primeiro beijo e de se apaixonar.

Desde o início, a vontade era fazer um longa a partir do argumento sobre um jovem cego que se apaixona pelo colega de classe, mas a grana não foi suficiente. Daniel decidiu começar aos poucos, com 17 minutos. “O curta-metragem serviu para mostrar como era possível contar essa história simples, leve e comunicativa”, resume.

O resultado surpreendeu: Eu não quero voltar sozinho estreou em 2010, em Paulínia, São Paulo, e foi exibido em mais de 100 festivais, onde recebeu 82 prêmios. Desde janeiro de 2011, está disponibilizado gratuitamente no YouTube e já superou 3 milhões de visualizações. “O longa nunca vai chegar a esse número”, constata Daniel. Há um sério risco de ele estar enganado.

Equipe do longa na entrega do prêmio Teddy, em Berlim (Teddy Awards /Divulgação)
Equipe do longa na entrega do prêmio Teddy, em Berlim

Tema urgente

Apesar de partirem do mesmo argumento, os processos do longa e do curta foram independentes, separados por um intervalo de três anos. Como em time que está vencendo não se mexe, Daniel Ribeiro trabalhou com a mesma equipe e, principalmente, o elenco revelado em Eu não quero ficar sozinho. Aliás, os jovens atores Ghilherme Lobo, Fábio Audi e Tess Amorim são um verdadeiro achado.

Descoberto nos testes realizados para o curta, Ghilherme Lobo – que não é deficiente visual – tinha 15 anos quando interpretou Leonardo, o adolescente cego. Hoje, aos 19, tem carreira nos palcos paulistas e participou de alguns musicais, como A noviça rebelde. Curiosamente, no aniversário de 18 anos dele foram rodadas as cenas que poderiam gerar polêmica: momentos em que os garotos se permitem um pouco mais de intimidade.

Hoje eu quero voltar sozinho é a história de dois garotos que se apaixonam. Ponto. Para o diretor, este filme é necessário. “Os gays se tornaram visíveis nos últimos 15, 20 anos. Chegou um momento em que as forças conservadoras resolveram contra-atacar. É uma fase de transição”, acredita Daniel Ribeiro. 

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