Zero Hora - 02/04/2014
Estava caminhando pelo corredor do supermercado quando reparei na roupa
da mulher à minha frente: ela estava de calça legging e um top de lycra.
Naturalmente, dali iria para a academia de ginástica, ou havia acabado
de voltar de uma. Como vou muito cedo ao súper, é comum eu encontrar
várias mulheres em trajes esportivos, todos ajustados ao corpo por causa
do material com que são confeccionados. Foi então que me dei conta de
que eu estava vestida do mesmo modo, já que em seguida teria aula de
pilates. Contei: éramos algo em torno de sete mulheres no súper de
manhã, de idades diversas, todas correndo risco de serem atacadas
sexualmente assim que saíssemos de lá. Afinal, estávamos “pedindo”.
Corta para a saída do colégio da minha filha. O sinal bateu. Pelo
portão, saem duas, três, nove adolescentes. Quase todas de short e blusa
de alcinhas, aproveitando os últimos dias de calor pós-verão. Algumas
iriam a pé para casa, outras de ônibus, circulando pelas ruas com pernas
e barrigas de fora. Naturalmente, “pedindo”.
Acreditamos que as pessoas “pedem” para sofrer consequências. O
menino que detesta futebol está pedindo para ser alvo de piadas
homofóbicas, o ciclista que pedala numa rua movimentada está pedindo
para ser atropelado, o turista que deixa seus pertences na areia
enquanto mergulha no mar está pedindo para ser roubado. É um vício de
linguagem que divide a culpa da violência entre todos – ninguém é vítima
absoluta. Algo na linha “perdoa-me por me traíres”. Se você foi sacana
comigo, é porque mereci.
Há uma grande diferença entre a contribuição que dou ao que acontece
comigo – claro que isso existe – e o que é maldosamente confundido com
contribuição a fim de atenuar a penitência do agressor. O resultado da
pesquisa do Ipea que revelou que boa parte da população acredita que o
modo de vestir de uma mulher justifica o estupro, é chocante e
indefensável. Um homem que se prevalece desse argumento (“ela estava
pedindo”), além de criminoso, é um covarde.
Da mesma forma, o fato de estarmos alarmados com os índices
crescentes de corrupção e de a sociedade estar se organizando em
manifestações contra o governo não significa que estejamos “pedindo” a
volta da ditadura. Violentar a democracia também seria um estupro.
Má-fé. É ela que faz com que pessoas que não toleram a liberdade
tentem reprimi-la usando a desculpa de estarem atendendo a “pedidos”.
Liberdade ainda é uma palavra que assusta. Pessoas livres são
consideradas irresponsáveis, por isso o impulso de enquadrá-las. Mas de
responsabilidade os repressores entendem nada. Se entendessem,
assumiriam os seus atos e pagariam integralmente por eles, em vez de
tentarem repartir a conta da brutalidade com inocentes que estão apenas
exercendo seu direito à cidadania.
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