Talvez tenha sido um dia
depois do golpe. É difícil
precisar. Afinal, até hoje
ninguém sabe direito
em que dia aconteceu o
golpe. S empre soube
que foi no dia primeiro
de abr il, mas que, ao
contar a história, os militares o anteciparam
para o dia 31 de março, para que não
coincidisse com o Dia da Mentira. Leio
agora, entre as muitas reportagens que
marcam o 50º aniversário do fato, que foi
na madrugada de 2 de abril. Então deve ter
sido no dia 3 de abril de 1964, uma sextafeira,
primeiro dia de aula depois do golpe.
Quando entrei na sala do colégio em
que estudava em São Paulo, estava lá, com
letra bonita, toda redondinha, escrito no
quadro-negro: “Para uma fortaleza vermelha,
só mesmo um Castelo Branco”.
A frase nunca fez sentido. O medo de
uma “fortaleza vermelha” foi justamente o
que justificou o golpe que levou Castelo
Branco ao poder. Por isso, nunca achei
que ela tinha sido escrita por um dos irmãos
maristas que nos davam aula. Aquela
bobagem só poderia ter sido de autoria
de algum colega de classe. Alguém que tivesse
12, no máximo 14 anos e estava ali
cursando o segundo ano ginasial. Alguém
que confiava em trocadilho mesmo que
ele não fizesse sentido político. O irmão
que entrou conosco na sala para a primeira
aula da manhã mandou alguém apagar
rapidamente o quadro-negro. Foi apagado.
Mas não da minha memória. Ainda
hoje, quando me lembro do golpe, dos primeiros
dias do golpe, o que me vem à cabeça
é aquela sentença desconexa: “Para
uma fortaleza vermelha, só mesmo um Castelo
Branco”.
Na semana seguinte, começou a crise lá em
casa. Deixa eu explicar: meu pai era oficial
do Exército. Era um tenente-coronel. Não
era o que se chamava naqueles tempos de
um revolucionário. Ou golpista. Mas era um
militar. Respeitava hierarquia. Então, respeitava
o que chamávamos naqueles tempos de
Revolução. Minha mãe, de alguma maneira,
sentia-se ligada a Jango. Uma de suas irmãs,
a Dinda, trabalhava com Maria Teresa Goulart.
Minha mãe foi antirrevolucionária de
primeira hora. De algum lugar, fez saltar
uma veia jornalística e passou a escrever,
madrugadas adentro, em folhas de papel almaço,
artigos contra os militares. Ela os mostrava
para meu pai, que ficava irritado. Não
ficava bem uma mulher de militar expor assim
seu pensamento contra a Revolução. Ela
resolveu a parada assinando os artigos com
um pseudônimo, Madame X, e continuou varando
as madrugadas escrevendo, escrevendo,
escrevendo e aguardando a volta triunfal
de Jango e Brizola. O plano era enviar os textos
a algum jornal que já estivesse na oposição.
Aqueles artigos nunca foram enviados
para jornal algum.
De manhã, ela os rasgava, insatisfeita com o
resultado, e começa a escrever de novo. Eu tentava
fugir das brigas indo ao cinema. Naquela
semana, vi “Sherlock de saias”, no cine Jamor, logo
ali no Jabaquara, com Margareth Rutheford
interpretando a Miss Marple de Agatha Christie.
A crise passou rápido. Minha mãe abandonou
o talento de articulista político, meu pai
voltou à hierarquia e íamos vivendo em paz
até que o Golpe me mandou para a Avenida
Atlântica. Já disse que minha tia trabalhava
com a primeira-dama? Pois então, como
acreditava que seu exílio seria rápido, Jango
pediu para a Dinda cuidar do apartamento
que ele mantinha na Avenida Atlântica.
E lá fui eu, durante minhas férias escolares,
exilar-me no Edifício Chopin. Tecnicamente,
não era o Chopin. Era um dos
outros dois prédios anexos ao famoso edifício
das festas de réveillon. Um se chama
Prelúdio; o outro, Balada. Acho que o apartamento
do Jango ficava no Prelúdio, com
vista para a piscina do Copacabana Palace.
Não me lembro de muitos resquícios de
Jango e Maria Teresa no lugar. Dela, havia
um massageador, eletrodoméstico das
dondocas da época que caiu em desuso, no
quarto principal. Dele, uma biblioteca vistosa.
Nunca vi ninguém lendo livro algum
daquela biblioteca. Acho que era só decorativa.
Daquelas bibliotecas que só têm
lombadas, sabe? Isso durou dois ou três
anos. Depois, quando Jango percebeu que
sua temporada no Uruguai seria bem mais
longa do que previa, um cunhado dele —
não, não era o Brizola, era o irmão de Maria
Teresa — pediu o apartamento de volta.
E assim acabou nosso exílio na classe alta.
Pouco tempo depois, testemunhei minha
tia recebendo um telefonema do irmão de
Maria Teresa. Ele tinha dado por falta de algumas
toalhas de banho no apartamento
do ex-presidente. A Dinda mandou o cunhado
presidencial à merda, e nunca mais
tive contato com os Goulart. Para mim, a ditadura
risonha e franca acabou ali. Em seguida,
a barra pesou. Uma prima querida
que vivia na clandestinidade foi presa, entrei
em conflito com alguns militares da família
e... Bem, mas isso é uma outra história
que fica para uma outra vez.
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