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Da lama ao clássico
Primeiro disco de Chico Science e Nação Zumbi faz 20 anos. Marco fundador do movimento manguebeat, o álbum da banda pernambucana trouxe novo paradigma para o pop nacional
Camila Souza e Raquel Lima
Estado de Minas: 02/04/2014
Chico Science (c) e os companheiros da banda Nação Zumbi mesclaram o pop aos sons do Brasil profundo |
Recife – O produtor paulista Pena Schmidt foi pioneiro em detectar o potencial da banda pernambucana Chico Science & Nação Zumbi, a CSNZ. O contrato de sua pequena gravadora, a Tinnitus, foi o primeiro a chegar às mãos do compositor Francisco de Assis França. Ele nem sequer imaginava que ali surgia o primeiro disco de um dos principais grupos de nosso pop contemporâneo, gestado por rapazes que subiam em palcos improvisados no Recife e em Olinda.
A Tinnitus não fechou com a CSNZ, mas a banda recebeu contrato de R$ 40 mil do selo Chaos, da Sony Music. Semanas depois, em outubro de 1993, começava a surgir o emblemático Da lama ao caos, disco que completa 20 anos este mês. A assinatura com a gravadora garantiu adiantamento importante. Com ele o guitarrista Lúcio Maia e o contrabaixista Dengue compraram os primeiros bons instrumentos de sua carreira.
A Nação Zumbi se hospedou em um apartamento em Copacabana, no Rio de Janeiro. Por um mês os rapazes encararam 12 horas diárias de trabalho, de segunda-feira a sábado, no estúdio Nas Nuvens. A ficha técnica do álbum traz os nomes de Dengue (baixo), Canhoto (caixa), Chico Science (voz), Gilmar Bola 8, Gira e Jorge Du Peixe (alfaias), Lúcio Maia (guitarra) e Toca Ogan (percussão e efeitos).
O produtor dos sonhos da CSNZ era o guitarrista norte-americano Arto Lindsay. Mas a Sony escalou para o posto o contrabaixista Liminha, dos Mutantes, dono do Nas Nuvens. “Arto representava a cultura pop, conhecia bem o linguajar de Pernambuco por ter morado em Garanhuns. Entretanto, Liminha acrescentou algo que Arto não poderia: a experiência em estúdio. Ele soube tirar leite de pedra”, conta Dengue.
“Eles chegaram verdes, mas muito compenetrados e profissionais”, lembra Liminha. “Era um som diferente, deu muito trabalho. Quando fui masterizar o álbum em Los Angeles, sentiram falta da bateria, mas esse é um fator diferencial. O som era fechado”, explica o produtor.
FESTIVAL Em 9 de abril de 1994, a banda apresentou o disco na segunda edição do Abril pro rock, no Recife. “A Sony Music veio em peso, distribuímos LPs e CDs para o público. Na segunda-feira, depois do festival, embarcamos para o Sudeste para fazer shows e participar de programas de TV – do Faustão a Jô Soares”, recorda o produtor Paulo André Pires, empresário da CSNZ na época.
Ao apresentar as 14 faixas de Da lama ao caos, a viagem de Chico Science & Nação Zumbi sacramentou o movimento que ficaria conhecido como manguebeat e começou a desorganizar a música brasileira. “O disco fala de um estado caótico, na lama ou em grandes centros urbanos. É como se um homem-caranguejo saísse do manguezal para o centro urbano em busca de novo modo de vida, mas, de um modo ou de outro, ele é sempre castrado em seus direitos, é sempre roubado. Da lama ao caos é isto: a cara do Recife”, explicava Chico Science em vídeo. Em 1997, aos 30 anos e consagrado, o cantor e compositor perdeu a vida num acidente de carro.
Manguebeat A CSNZ soube mesclar a cultura de artistas do povo, como Mestre Salustiano, Velho Faceta e Lia de Itamaracá, à sonoridade do hip-hop e do rock. Assim nascia o manguebeat, entre o pop e o Brasil profundo do coco e do maracatu.
“O popular estava no ostracismo, totalmente renegado”, lembra o baterista Pupillo, que ingressou na banda no fim da turnê internacional de Da lama ao caos. “Houve uma recolocação no mercado. O maracatu, a ciranda e o coco foram redescobertos”, explica Jeder Janotti, que pesquisa a cultura pop e dá aulas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
“O disco e o movimento mangue serviram para o resgaste da autoestima do Recife. Eles projetaram a cultura local a partir da linguagem pop, influenciando outras bandas no Brasil. Houve uma redescoberta do mercado”, afirma Janotti.
No entanto, o feito não se materializou imediatamente em vendas. Em dois anos elas não chegaram a 30 mil cópias. As rádios foram o primeiro entrave. “Emissoras de rock do eixo Rio-São Paulo eram unânimes: ‘Isso é regional. Não tocamos’. Já as populares diziam: ‘É rock’. Fomos vítimas da ignorância”, relembra o produtor Paulo André.
Tambor Críticas apontavam: pesou contra o álbum o fato de as alfaias – responsáveis pela impactante sonoridade nos shows – perderem força em estúdio. “A gente esperava um pouco mais dos tambores, mas a qualidade dos arranjos ultrapassou as deficiências”, afirma Renato L, coautor do Manifesto Mangue, uma espécie de “carta de intenções”, divulgada com o álbum, que explicava a proposta estética dos pernambucanos.
O esquema de distribuição do selo Chaos, braço alternativo da Sony, foi outro problema. Discos da CSNZ chegavam às lojas em combo ao lado de produtos dos bem-sucedidos Skank e Gabriel, O Pensador. “Como Da lama ao caos demorava mais para sair, as lojas não repunham. À medida que circulávamos pelo país, recebíamos reclamações de que faltavam álbuns nas lojas”, conta Paulo André.
A virada veio em fevereiro de 1995, na turnê internacional da CSNZ, viabilizada por André e pelo grupo – incansáveis em enviar faxes e discos para produtores de vários países. Foram 32 apresentações em 54 dias. Graças ao show no Central Park, em Nova York, os pernambucanos receberam o primeiro cachê em moeda estrangeira: US$ 1,5 mil. O New York Times elogiou a banda brasileira, que também brilhou nos festivais Montreaux Jazz e Sphinx, em Bruxelas. O disco foi lançado no Japão, nos Estados Unidos e nos principais países da Europa.
As faixas de Da lama ao caos também ganharam versões das bandas O Rappa e Sepultura. E assim a revolução mangue conquistou as ruas.
três perguntas para...
Como foi o primeiro contato com a CSNZ?
O pessoal da Sony me falou da banda. Disseram que tinha um som interessante e me mandaram a fita. Ouvi e gostei, embora estivesse mal gravada. A primeira impressão foi de que Chico fazia algo paralelo ao álbum Selvagem (1986), dos Paralamas do Sucesso. Herbert Vianna assumiu toda a brasilidade ali, com uma junção de rock inglês e ritmos daqui. Chico veio para desencadear isso com mais força.
Foi um desafio produzir o álbum?
A ideia era muito boa, o conteúdo também. Mas eles não tinham experiência de estúdio. Era uma pedra bruta a ser polida. Por outro lado, deram o sangue, cresceram na gravação. O problema é que quando você os via ao vivo, os tambores tornavam tudo muito maior do que realmente era. Minha missão foi fazer aquilo tocar direito em uma caixa de som menor.
Como você lidou com as críticas pós-lançamento?
Diziam que o disco era menor e a banda era maior ao vivo. Mas aí é que está. Não havia imagens para dividir a atenção. Quando conversei com Alexandre Kassin, ele disse: ‘Os tambores não têm som’. Porra! Ainda bem que alguém percebeu. Tive a maior dificuldade para tirar som daquilo, não tinha graves. Mas gostei do resultado. Tenho o maior orgulho de ter trabalhado com Chico. Ele está no mesmo patamar de Gilberto Gil, dos Titãs. O CD está no meu cartão de visitas.
Antônio Nóbrega
multiartista
“Hoje, não tenho mais a visão reticente com que recebi o álbum na época de seu lançamento. Valorizo, principalmente, duas atitudes que se refletem naquela obra: a utilização dos ritmos populares, como o maracatu e o coco, e o teor político e contestatório contido nas letras. Ambas contribuíram para os jovens se aproximarem mais da cultura e dos problemas brasileiros.”
Miranda
produtor do primeiro disco da banda Mundo Livre S/A
“O disco foi uma decepção. A gente esperava algo parecido com o que rolava nos shows. Mas Liminha procurou um caminho diferente, mudou o som. A história transformou o disco em um grande álbum.”
Pedro Luís
compositor
“O álbum derrubou a mesmice das prateleiras da indústria fonográfica. Foi um alento. E me influenciou, ao me fazer ter orgulho de ser um artista contemporâneo com ideias que não se entregam ao caminho mais fácil.”
Dolores
DJ
“Esse disco ajudou a definir a música pop na década de 1990. Todo mundo sentia a pegada: brasileira e cosmopolita. Vários estados formaram bandas durante os shows de Chico. Era inspirador. Na época, ninguém trabalhava a cultura brasileira daquela forma tão internacional.”
Maciel Salu
músico, filho de Mestre Salustiano
“O disco foi uma tapa sem mão em Pernambuco e no mundo. Embora soubéssemos da cultura daqui, precisou alguém mostrar lá fora. Há 20 anos, o mercado não era como hoje. Chico trouxe os olhos das pessoas para cá.”
Herbert Vianna
músico
“Não havia timidez
com valores brasileiros, era antropofágico”
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