Cláudia Regina Miranda de Freitas
Advogada, mestre em ciências penais pela UFMG, professora de direito penal da Faculdade Arnaldo Janssen
Estado de Minas: 16/05/2014
Tristes episódios
vivenciamos com a onda de justiçamentos, que não têm sido raros,
infelizmente. Esses criminosos que se autointitulam “justiceiros” impõem
cruelmente o castigo a pessoas pelo simples fato de se acharem no
direito de punir um suposto infrator. Ignoram que há instâncias formais
de punição e que a elas devem recorrer, como ocorre em qualquer país
civilizado. O último acontecimento dessa natureza divulgado pela
imprensa, ocorrido no Guarujá, é de extrema gravidade, uma vez que tudo
se deu devido à semelhança física da vítima, Fabiane, uma dona de casa
de 33 anos, com um retrato falado de uma suposta sequestradora de
crianças para participação em rituais de magia negra. Noticiou a
imprensa que dezenas de pessoas enfurecidas investiram de forma covarde
contra a vítima, amararam-na e na sequência a arrastaram até que
sucumbisse ao estado de inconsciência após um espancamento coletivo.
Pessoas assustadas com a violência chamaram a polícia tarde demais para
evitar a morte da mulher.
Atitudes como essa demonstram que parte
da sociedade brasileira retrocedeu ao obscurantismo experimentado no
período da Idade Média, em que predominava a pena capital sem que fosse
dada à vítima a oportunidade de se defender. O que é pior: parte da
população aplaude a atuação de justiceiros ao argumento de que se o
Estado não responde à demanda por justiça, que seja feita pelas próprias
mãos. Nessa lógica, supostos autores de furtos são amarrados a postes,
pichadores têm seus corpos pichados, bruxas por semelhança são
arrastadas até a morte por uma multidão. É no mínimo assustador e nos
força a reflexão. Nesse quadro, é essencial diagnosticar que, numa
sociedade amedrontada e insegura, os meios de comunicação de massa
respaldam políticas de tolerância zero e prestam um desserviço enorme à
sociedade, fomentando condutas de autotutela.
Desde que ocorreu a
separação entre a religião e o Estado, delegamos ao poder público o
poder punitivo, de modo que toda e qualquer sanção só se legitima pela
via jurisdicional. Assistimos impassíveis a uma inversão de valores em
que virtudes como a prudência e a tolerância tornaram-se obsoletas, num
contexto de truculência e incentivo a reações hostis. Sobre a
tolerância, o filósofo André Comte-Sponville observa que o seu exercício
significa renúncia a uma parte de sua cólera, de modo que só é virtuoso
aquele que supera seu próprio interesse, seu próprio sofrimento em prol
de outrem. Tolerância não é sinônimo de passividade, ao contrário, tudo
o que ameaça efetivamente a liberdade e a paz é intolerável. Sejamos
intolerantes com relação à crueldade e à ignorância daqueles que
condenaram à morte a dona de casa.
Especificamente no caso do
Guarujá, constatou-se que a reação de ódio que culminou com um desfecho
trágico partiu de moradores da periferia da referida cidade, do mesmo
bairro em que residia a vítima. Em sua maioria, são pessoas
desassistidas pelo Estado em suas necessidades primárias, como educação
de qualidade e segurança pública. O efeito deletério de gerações
deixadas ao desamparo pelo poder público é o aumento da vulnerabilidade
de determinados grupos de pessoas, manifestada em atitudes irracionais e
que atentam contra a dignidade humana. Não seria exagero afirmar que o
resgate da dívida social deve mirar as gerações que virão, já que é
irreparável o dano já produzido e que permanecerá repercutindo
socialmente.
Em tempos de tamanha hostilidade, evocar o respeito
aos direitos humanos torna-se imprescindível, embora o senso comum se
refira a ele com desprezo, desconhecendo a dimensão extraordinária que
esse ramo do direito possui como um direito de todos os seres humanos,
identificado, sobretudo, com a plenitude do direito à vida, não só sob o
aspecto físico, mas também moral. Humanizar é preciso.
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