Zero Hora - 21/05/2014
Que comece logo essa Copa e que termine de uma vez, para que, de volta à
rotina, possamos avaliar o que está acontecendo no país de forma mais
focada. A Copa não tem culpa de nada, mas sem dúvida despertou uma
enorme sensação de injustiça e revolta – perdeu quem contava com o povo
pacífico de sempre. Esse despertar é positivo, pois só reivindicando é
que teremos as necessidades prioritárias atendidas, mas, para
atendê-las, os três poderes precisam assumir suas funções com honradez. O
que está ocorrendo é justamente o contrário: um desgoverno crescente.
Diante disso, as pessoas passam a agir pela própria cabeça e com seus
próprios meios.
A onda de linchamentos ilustra esse desgoverno. Provocada pela
excitação do momento e pela sensação de impunidade que a ação em bando
provoca, acaba-se cometendo crimes atrozes contra suspeitos que não
tiveram julgamento nem chance de defesa. Barbárie pura.
Num grau menos violento, mas igualmente perturbador, são os saques
que tomaram conta de Pernambuco nos últimos dias – e cito Pernambuco
apenas como exemplo recente. Vendo as cenas de transeuntes saindo de
lojas carregando o que podiam, fiquei pensando como tudo é uma questão
de semântica. O que difere o saqueador de um ladrão? O fato de não ter
havido ameaça antes do roubo? De não ter sido um ato planejado, e sim
uma ação provocada por uma oportunidade? O direito de propriedade
privada deixa de existir caso o movimento seja feito em grupo e não
isolado?
Ainda no Nordeste, já aconteceu de estradas terem sido fechadas por
moradores das redondezas a fim de promover um “pedágio solidário”: só
liberavam o trânsito se o motorista colaborasse com dinheiro ou com
produtos para a cesta básica. Caminhoneiros precisavam ceder parte da
carga para poder ir em frente, e assim as comunidades eram abastecidas
com leite, cereais, remédios, frutas. Carros particulares podiam dar uma
quantia em espécie, a critério do gentil doador. Sem uso de arma, tudo
muito educado. Uma contribuição “espontânea”.
Há saqueadores de todo tipo. Os de baixa renda reforçam a despensa
na beira da estrada, os de alta renda sonegam impostos, e assim cada um
vai fazendo justiça à sua maneira. Essa subversão não é consequência da
gestão de um partido específico, e sim de uma cultura política que vem
apodrecendo há décadas, somada a uma índole nacional que nunca foi
exatamente nobre (sermos alegres, hospitaleiros, musicais e bons de bola
nos torna simpáticos, mas simpatia não é um valor que, por si só, salve
o caráter).
Se antes o “jeitinho” acontecia por baixo dos panos, agora colocamos
a cara na janela, deixando claro que não estamos mais dispostos a
obedecer nada e a ninguém. Ou o Brasil passa a ser governado com
profunda seriedade, ou esse será, infelizmente, o plano mais
bem-sucedido da nossa história: o plano B.
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