Zero Hora 01/03/2015
Todos vão para Machu Picchu? Eu embarco para Porto
Príncipe. Todos estão lendo o novo livro do Chico Buarque? Nem abro. Show do
Paul McCartney de novo? Ele pode vir 46 vezes ao Brasil que não vou. Prefiro o
Guri de Uruguaiana.
O
que? O Guri de Uruguaiana está lotando teatros? Desisti, não vou mais.
E
assim ele vai sedimentando seu caráter. Ele, o homem que se recusa a fazer o
que todos fazem. Ou ela, a que se recusa a seguir o rebanho. Pode ser tanto ele
como ela. Os que formatam sua personalidade protestando contra o senso comum.
Fico
dividida diante dessas criaturas. Por um lado, reconheço sua autenticidade como
virtude e os admiro pela perseverança em sempre buscar aquilo que quase ninguém
viu, quase ninguém leu, quase ninguém escutou falar a respeito. Eles sustentam
os mercados independentes e de quebra atraem para si o charme dos aventureiros
e desbravadores. São homens e mulheres únicos. Não foram produzidos em série.
Como
não se apaixonar por uma criatura dessas? Criei aqui uma figura hipotética e já
estou quase o convidando para jantar.
Por
outro lado, acho que deve ser meio cansativo buscar sempre aquilo que é
estranho, diferente, inédito, escondido, inabitado, marginal, esquisito. Ainda
mais nesses tempos de conexão tecnológica, em que praticamente não existem mais
segredos. O novo permanece novo por muito pouco tempo. O Mr. Autêntico tem que
ser rápido.
Tem
outra questão: o autêntico não quer conhecer o Rio de Janeiro, seria uma viagem
óbvia. Não foi assistir a Birdman porque ganhou o Oscar. Nunca leu um livro que
tenha ganhado segunda edição. Odeia ceviche sem nunca ter experimentado. Perdeu
grandes festas. Valerá mesmo a pena ser um anti-herói?
Outro
dia conversava com um exemplar dessa espécie e, mesmo extasiada com sua
biografia de outsider, arrisquei uma perguntinha miúda: não dá para transitar
entre lá e cá? Se você quer ir até a Groenlândia, pega mal fazer um pit stop em
Ibiza? Não dá para infiltrar alguma literatura norte-americana em meio a sua
coleção de poesia indígena? Posso pedir um filé com fritas em vez de sopa de
capivara? Se eu for conhecer uma pousada no meio do mato que não está no
Booking.com, encontrarei um vaso sanitário no banheiro ou isso é um luxo
pequeno burguês?
Transitar
entre lá e cá. Ser um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um
pouco rendido, ter histórias alucinantes para contar e outras bem triviais, é
possível?
Então
o milagre se deu. Ele disse que estaria disposto a conhecer o Rio de Janeiro
(desde que pudesse dar uma passada antes em algum lugarejo com menos de 50
habitantes, sem luz elétrica). O convidei para jantar na mesma hora. Não pedi
filé com fritas para não provocar. E ele não pediu sopa de capivara porque não
tinha.
Ser
um pouco da urbe e um pouco da selva, um pouco curioso e um pouco rendido, é
possível?
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