terça-feira, 23 de outubro de 2012

JOÃO PEREIRA COUTINHO




Quem descobriu o Brasil?

'Descobrir' não é o mesmo que chegar primeiro. Mesmo essa discussão, saber quem foi o primeiro, é secundária

ORA, ORA: que pergunta! Qualquer um sabe que Pedro Álvares Cabral leva a taça: em 1500, Cabral partiu de Lisboa e, intencionalmente ou não, "achou" a terra de Vera Cruz. Eis, de forma esquemática, a história da descoberta do Brasil.
Mas ainda me lembro das minhas aulas na faculdade de letras, quando um fantasma pairava sobre Cabral. O fantasma chamava-se Duarte Pacheco Pereira, e a polêmica durava cem anos por causa de uma obra do famoso navegador e cartógrafo revelada em 1892.
No seu "Esmeraldo de Situ Orbis", Duarte Pacheco dava conta da existência de "terra firme" a Ocidente, e de "muitas e grandes ilhas adjacentes a ela", para quem fosse "além" da grandeza do "mar oceano". Ano da viagem: 1498.
Pergunta inevitável: teria sido Duarte Pacheco o verdadeiro descobridor do Brasil, dois anos antes de Cabral?
Os historiadores subiram ao ringue: havia quem dissesse que sim (Jaime Cortesão, por exemplo). Havia quem dissesse que não: a obra fora escrita depois da viagem de Cabral, e a incorporação de "terra cabralina" no relato era suspeita, para dizer o mínimo.
Ao longo dos anos, fui lendo tudo sobre a polêmica com curiosidade amadora. Até encontrar, em feliz acaso, uma notável entrevista com o historiador Francisco Contente Domingues no jornal português "Público". Vale a pena ler a entrevista.
Mas, sobretudo, vale a pena ler o livro que Domingues escreveu sobre Duarte Pacheco. Intitula-se "A Travessia do Mar Oceano: A Viagem ao Brasil de Duarte Pacheco Pereira em 1498" (Tribuna da História; R$ 29; 112 págs.). É a mais inteligente interpretação sobre o caso que conheço.
Ponto prévio: o historiador Contente Domingues não põe em causa a veracidade da viagem. Mas, antes de atribuirmos a primazia da descoberta do Brasil a Duarte Pacheco, é preciso perguntar duas coisas. Em primeiro lugar, o que significa "descobrir". E, em segundo, o que pensou o próprio Duarte Pacheco ter "descoberto" em 1498.
A resposta implicou um retorno ao "Esmeraldo de Situ Orbis", mas também uma discussão mais vasta sobre o conhecimento cartográfico da época.
Conclusões? "Descobrir" não é o mesmo que chegar primeiro, escreve o autor. Mesmo essa discussão -saber quem foi o primeiro- é hoje secundária.
Como escreve Domingues, "'descobrimento' implica a incorporação do conhecimento de uma nova terra no patrimônio geográfico coletivo" (págs. 19-20).
E, pormenor fundamental, "'descobrimento' implica ainda o regresso, por norma, e em resultado dessa incorporação no patrimônio geográfico coletivo" (pág. 20). É correto supor que Duarte Pacheco esteve no Brasil antes de Cabral. Mas essa primazia não lhe confere o título de "descobridor".
E não confere esse título por um outro motivo: é um erro anacrônico olhar para as viagens de Duarte Pacheco com a visão do mundo que temos hoje. Mais importante é questionar a visão que Duarte Pacheco partilhava em finais do século 15.
Para Domingues, essa visão era tributária de Jacob Perez de Valência, um intérprete de Ptolomeu, segundo a qual "as águas todas jazem metidas dentro da concavidade da terra, e a terra é muito maior que todas elas" (pág. 46).
Como afirma o historiador, e aqui repousa a excelência da interpretação, Duarte Pacheco não está interessado na localização do Brasil. O que o move é antes testar a sua própria concepção do mundo -um mundo onde o "mar oceano" é uma grande lagoa cercada pela terra.
Duarte Pacheco não poderia ter descoberto o Brasil porque, na sua própria mente, não existia nenhum Brasil, nenhuma América, nenhum continente novo para ser descoberto. Ele apenas chegara ao outro lado da margem -a essa "tão grande terra firme", "que vai em cercoito per toda a redondeza".
Moral da história?
Descanse, leitor: não há ainda razões para remover a estátua do meu antepassado do parque Ibirapuera.
Mas, aqui entre nós, talvez não fosse má ideia reservar um espaço junto a Cabral para Duarte Pacheco. Não porque ele tenha chegado primeiro.
Mas porque existe algo de irônico, e até de atemporal, na história de um homem que não viu o que tinha à frente porque uma errada concepção do mundo o impediu de ver.
Acontece aos melhores.
jpcoutinho@folha.com.br

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