terça-feira, 23 de outubro de 2012

Prefeito do Rio anuncia que internará à força adulto dependente de crack


Prefeito do Rio anuncia que internará à força adulto dependente de crack

Eduardo Paes não prevê data para início da medida, mas afirma que a decisão já está tomada
Método é indicado para alguns casos, diz médica; para OAB-RJ, medida pode ser questionada na Justiça



DENISE MENCHEN
MARCO ANTÔNIO MARTINS
DO RIO

A Prefeitura do Rio irá internar compulsoriamente adultos dependentes de crack. A decisão foi anunciada pelo prefeito Eduardo Paes (PMDB) após reunião com líderes comunitários da favela do Jacarezinho, na zona norte.
Até o início do mês, a favela abrigava a maior cracolândia do Rio. Com a ocupação para a instalação de uma UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), no dia 14, usuários da droga se espalharam por outros pontos.
"Não vou ficar de camarote assistindo às pessoas se drogarem nas ruas. Tem gente quase se jogando debaixo dos carros na avenida Brasil. Não vou ficar no debate ideológico. Nossa obrigação é salvar vidas", disse Paes.
O prefeito afirmou que a medida não começa agora, mas não previu data. Também não informou se será preciso ter autorização da Justiça para a internação. Disse ter pedido que os secretários de Assistência Social e de Saúde apresentem até 5 de novembro um plano.
"Prefiro não me aprofundar porque a decisão política, que é o que me cabe, está tomada. Sei que é polêmico e nem quero comparar com detenção. Estamos lidando com doentes, e doentes a gente auxilia."
Segundo o prefeito, o primeiro passo será criar de 600 a 700 vagas para atender os dependentes. Depois, será verificada a necessidade de contratação de pessoal.
A prefeitura já faz o abrigamento compulsório de crianças e adolescentes com alto grau de dependência. A medida, em vigor desde maio de 2011, é amparada por decisão judicial. Desde então, 170 jovens já passaram por abrigos e 120 continuam internados.
Já os adultos são levados para centros de acolhimento, onde podem ser encaminhados para tratamento nos CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), de atendimento ambulatorial, sem internação.
Quem não tem para onde ir pode ficar em abrigos municipais, mas o trânsito é livre. Muitos acabam de volta às ruas.
"Sei que isso é polêmico, mas acho que a gente tem respaldo para tomar essa decisão no caso do crack. Não se confunde internação compulsória com hospitalização de pessoas com problemas mentais. Para a gente está muito claro que os dependentes de crack não conseguem tomar decisões.
A chefe do setor de dependência química da Santa Casa, Analice Gigliotti, diz que a medida é indicada para alguns casos, mas o risco é que se torne "higienista". "É preciso ter critérios claros. Nem todo mundo precisa de internação."
Para o presidente da comissão de política sobre drogas da OAB-RJ, Wanderley Rebello Filho, a medida corre o risco de ser questionada judicialmente. "É uma violação de direitos humanos fundamentais, como o direito de ir e vir."


ENTREVISTA
'Louvável', mas exige cuidados, diz psiquiatra
DO RIO
Para o presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, Antonio Geraldo da Silva, a decisão do prefeito do Rio de abrir vagas para o tratamento compulsório de usuários de crack é "louvável", mas a internação só deve ser feita com a indicação de um psiquiatra, sob risco de virar "eugenia".
A decisão é adequada?
É louvável que um grande município resolva fazer alguma coisa, porque por enquanto estamos cometendo omissão de socorro e suicídio assistido. O prefeito está certo em querer ajudar. O que não pode haver é internação compulsória sem indicação médica. Não podemos banalizar, senão vira eugenia social.
É uma medida efetiva?
Sim, tem bastante efetividade, quase no mesmo nível da internação voluntária. Mas para isso tem que ser em um serviço que tenha qualidade e respeite as necessidades específicas de cada paciente. Não se pode confundir internação com isolamento social ou prisão.
Quais características que o local de internação deve ter?
Deve contar com equipe multidisciplinar, psiquiatras e outros profissionais. Tem que ser um local especializado, sob pena de se fazer de forma incorreta.


ENTREVISTA
Decisão de Paes é 'higienista', afirma psicóloga
DO RIO
Para a presidente do Conselho Regional de Psicologia no Rio, Vivian Fraga, a decisão de internar compulsoriamente usuários de crack tem caráter "higienista".
A decisão é adequada?
É uma decisão política, não técnica. Há mais de um ano que estão internando crianças e adolescentes e a secretaria de Assistência Social não tem dados sobre a efetividade disso. Muitos saem dos abrigos e continuam usando drogas.
Por quê? Quais os problemas da política atual?
Desde 2011 temos feito fiscalizações nos abrigos e o que vimos é que não atendem o que a política pública preconiza. Eles têm uma lógica higienista. Pegam a pessoa em Manguinhos [zona norte] e colocam lá em Santa Cruz [zona oeste].
Isso afasta o convívio da família, que é importante. E é uma lógica medicamentosa. Não é feito nenhum trabalho para mudar a relação da pessoa com a droga.
Como tratar, então?
A gente propõe que a porta de entrada sejam os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial), e que, nos momentos de crise, a pessoa seja internada num hospital até se estabilizar. A ideia é que seja tratado por um profissional no seu território.


SAIBA MAIS

No país, 90% aprovam a internação

Pesquisa Datafolha realizada em janeiro apontou que 90% dos brasileiros aprovavam a internação involuntária de dependentes de crack. O percentual cai entre os moradores do Sul (86%), os que têm ensino superior (84%) ou renda acima de dez mínimos (79%).
Foram ouvidas 2.575 pessoas em 159 cidades.


Ação na cracolândia de São Paulo teve 1.176 internações voluntárias
DE SÃO PAULO

Balanço do governo de SP aponta que, na operação da cracolândia, no centro da capital, realizada no início do ano, houve 1.176 internações, mas todas foram voluntárias.
Segundo o coordenador estadual de políticas sobre drogas, Luiz Alberto Chaves de Oliveira, só há internação sem a concordância do usuário de drogas quando há laudo médico (internação involuntária) ou decisão judicial (internação compulsória).
Ou seja, não cabe à prefeitura ou ao Estado decidir, diretamente, se o usuário deverá ser internado, conforme prevê lei federal de 2001.
"Além disso, todos os indivíduos toparam a internação, ou seja, foi voluntária", afirmou o coordenador estadual.
A operação na cracolândia envolve Estado e prefeitura, em ações policiais e de saúde.
Oliveira afirma que já houve internações voluntárias ou compulsórias no Estado, fora da operação da cracolândia.

CRÍTICAS

No início da operação no centro de São Paulo, quando se levantou a possibilidade de haver internações compulsórias, o candidato à prefeitura pelo PT, Fernando Haddad, criticou a ação -agora adotada pela gestão Eduardo Paes, no Rio, alinhada ao PT.
No final da tarde de ontem, Haddad foi procurado pela Folhapara comentar a decisão do aliado Eduardo Paes, mas não foi localizado.
O Ministério da Saúde afirmou ontem que não iria se pronunciar sobre o assunto.


ANÁLISE
Abrigar, isolar ou tratar os dependentes de drogas?

IVONE STEFANIA PONCZEK

ESPECIAL PARA A FOLHA

As notícias sobre a disseminação do uso do crack têm sido alarmantes desde sua entrada no Rio de Janeiro há cerca de seis anos.
No Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas da Universidade do Rio de Janeiro (Nepad-Uerj), 70% dos pacientes que chegam são usuários de crack.
Várias iniciativas polêmicas têm sido tomadas visando esvaziar as cracolândias, levando suas populações para abrigos e encaminhando menores para internação compulsória.
Na área da saúde mental, tal medida ficou identificada com prisão, isolamento, tortura e maus-tratos, que realmente aconteciam antes da reforma psiquiátrica.
O uso de drogas foi recentemente descriminalizado e a identificação vinculando internação a punição ficou muito forte. Urge desmontar esta associação que impede que os usuários procurem e aceitem ajuda.
Fala-se da internação compulsória, mas onde seria esta internação, mesmo que não fosse compulsória? Quais equipes iriam cuidar destes pacientes? Abrigar não é tratar!
Não há quase locais para internação de adolescentes no Rio, nem equipes capacitadas para acolhê-los e efetivamente tratá-los.
Se houvesse, poderia transformar a internação compulsória no direito de tratamento que a Constituição garante: "saúde é um direito de todos e um dever do Estado". Tal mudança de enfoque é fundamental e faz toda a diferença.
O tratamento para dependentes de droga requer uma equipe interdisciplinar de saúde capacitada para as especificidades desse atendimento.
A internação deve ser pautada em rigorosos critérios de elegibilidade, tais como risco de vida ou de terceiros, descontrole no uso de drogas ou pedido espontâneo de ajuda, etc. Não há "pacotes de tratamento" que ignorem a singularidade do sujeito.

'MÃES-MENININHAS'

Outrossim, a triste visão das cracolândias, que lembram as cenas do Holocausto -onde o ser humano é reduzido à sua mais degradante condição-, é mesmo chocante, não pode ficar invisível. As intervenções públicas não devem incidir apenas nas consequências, mas também nas profundas causas sociais e psicológicas.
Por que as pessoas, sobretudo as mais desamparadas, estão se drogando tanto?
O governo tem que intervir em saúde, educação, prevenção e numa distribuição de renda mais justa.
Esta vulnerável população é constituída predominantemente de jovens e crianças relegados à sua própria sorte.
Elas não brincaram de "bandido e mocinho", estes fazem parte do seu dia a dia. E as bonecas não são de brinquedo, são filhos de gestantes precoces que já vêm predestinados a repetir o triste destino de suas "mães-menininhas".
IVONE SFETANIA PONCZEK é psicanalista e diretora do Nepad (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas) da Universidade Estadual do Rio de Janeiro






Nenhum comentário:

Postar um comentário