Hoje de manhã teve lugar a convenção do PT que indicou Fernando Haddad candidato a estas eleições presidenciais de 2022. O ex-governador nos recebeu minutos antes da plenária, enquanto dava o nó na gravata. Estamos concluindo um filme sobre a cidade de São Paulo, ele só teve essa janela em sua agenda e queremos ouvi-lo sobre sua primeira campanha eleitoral:
- Parece que foi ontem! diz, com sua voz rouca. Foi bonito. Quatro [filhos de] imigrantes disputando, dois oriundi e dois árabes... Parecia o mar Mediterrâneo. Foi um marco para São Paulo, por isso nem importa tanto quem ganhou, quem perdeu. Lembro o jantar que Russomanno preparou para o quarteto depois do segundo turno, todo de comida italiana - eu levei o babaganuch e o homus, Serra, os vinhos que conhecia do Chile, e o Chalita, esfihas inesquecíveis... Jogamos canastra, até dez mil pontos, carcamanos contra turcos, berrando como loucos.
A carreira política de Haddad fora irregular. Começou concorrendo a essa eleição, que teve várias reviravoltas, antes de um final inesperado, para a Prefeitura de São Paulo:
Carcamanos contra turcos, berrando como loucos
- E nunca antes na história do Brasil se viu isso, o vitorioso convidar os concorrentes para a posse e depois formar um conselho com eles e mais alguns ex-prefeitos da cidade, do Rio, de Curitiba... Melhor discutir com eles do que com vereadores, porque afinal um candidato precisa ter propostas, e alguns legisladores têm interesses muito locais, não têm visão do conjunto.
Baixa o tom de voz, fica íntimo, confidencial:
- Aprendi muito com esse conselho, porque antes eu só fui chefe, entendeu? Tive que lidar com iguais e superiores, dizem que isso reduziu uma arrogância e vaidade que eu nunca notei em mim, mas acho que saí disso um ser humano melhor, quem sabe, um político mais humano.
Depois, foi governador. Somando tudo, ganhara duas eleições e perdera duas. A voz embargada:
- Pena que Lula não pôde vir à convenção, mas está convalescendo e há de ficar bem.
O PT é detentor de um recorde na história do país, com dois presidentes sucessivos (o mesmo número que o PSDB), só que ambos reeleitos. A sociedade reduziu a miséria ao mínimo e se aproxima cada vez mais do sonho da ex-presidenta Dilma Rousseff: ser um país de classe média. Mas a Haddad cabe uma tarefa difícil, recuperar para o partido a Presidência perdida em 2018:
- Se conseguimos devolver à política paulista o respeito mútuo, o debate de propostas, por que não faremos isso na escala do Brasil?
Estamos rodando este filme há dez anos. Começamos em 25 de outubro de 2012, às vésperas de um segundo turno para a Prefeitura de São Paulo, quando entrevistamos José Serra; foi inevitável a conversa enveredar para o ano em que ele se elegeu presidente da República, sucedendo a FHC, ou seja, 1998:
- Não foi aprovada a reeleição para o Fernando [Henrique Cardoso], então o partido convergiu para o meu nome, com uma pequena ajuda minha (risos). E assumi no meio de uma crise braba, com os emergentes desabando. Foi a primeira vez que uma crise dessas foi resolvida sem derrubar a produção. Sempre me chamaram de desenvolvimentista, fiz jus ao nome. Segurei a moeda, mas não destruí a economia.
Perguntamos se sente mágoa porque não voltou à Presidência da República depois de seu único mandato:
- Bem, vocês leram "O economista e o presidente", a entrevista em que fiz o balanço de meu governo. Mas só consegui aprovar a reeleição no Congresso porque aceitei que não valesse para mim, apenas para meu sucessor. Isso, porque a oposição dizia que não era justo mudar as regras do jogo para beneficiar (imaginem só!) quem estava no poder. Foi a diferença entre meu projeto e o dos tempos do Fernando, que perdeu por pequeno número de votos. E me envolvi mesmo na discussão no Congresso, e consegui uma quase unanimidade. Mas com isso um único brasileiro ficava proibido de concorrer em 2002, e este brasileiro era o presidente da República. Salvei a economia, e fui punido.
Ele estava de saída para o Instituto José Serra, que trabalha em dobradinha com o iFHC, embora com vocações um pouco diferentes - o primeiro foca gestão, economia e saúde, enquanto o segundo prioriza a política, a cidadania, a educação. Os dois ex-presidentes tucanos almoçam juntos pelo menos uma vez por mês.
Enquanto dava a entrevista, bebia água aos poucos, hábito saudável que adquiriu quando ministro da Saúde:
- Como foi digerir a derrota para Lula em 2006?
- Bem que eu gostaria de concluir o que começamos. Mas é assim mesmo. A gente se esforça e outro colhe os louros.
Já no fim da entrevista, quando lhe perguntamos sobre sua decisão de concorrer agora à Prefeitura de São Paulo, eleição esta que perdeu duas vezes no passado:
- Termino por onde não comecei... É bonito ser prefeito da cidade em que a gente nasceu. Mas sabe, quero dizer uma coisa. Ser presidente é muito bom. Você realiza seus ideais. [Fernando] Collor não, está sempre irritado. Mas veja o Fernando [Henrique Cardoso], que sempre foi alegre, ficou ainda mais feliz. Mesmo Lula, que tanto tempo espumou de raiva, hoje é só sorrisos. E eu fiquei de bem com a vida. Qualquer resultado que obtenha, ninguém tira de mim o que fiz.
Uma risada envergonhada:
- O sucesso torna os homens bons. O sucesso, a glória... Todo mundo devia ser presidente da República por um tempo, é melhor do que análise, do que qualquer terapia.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo. Escreve às segundas-feiras
E-mail: rjanine@usp.br
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