Região pacificada por UPP recebeu evento com moradores e acadêmicos
Em encontro que teve tributo a Lima Barreto, idealizadores falam de exclusão da classe C pelo mercado editorial
No palco, Ana Maria Machado, presidente da Academia Brasileira de Letras, e o também acadêmico João Ubaldo Ribeiro falam do prazer de ler e escrever.
Diogo está cercado de amigos. Todos fazem muitas anotações. Querem tirar boa nota nos testes que ajudam na classificação da "batalha do passinho", um concurso que acontece no evento.
O passinho é uma dança no estilo funk que tomou conta da juventude carioca.
Diogo estudou até o primeiro ano do segundo grau, gosta de poesia e trabalha como servente no Hospital Marcílio Dias. Conta que aprendeu a dançar sozinho: "Sinto a música e deixo ela me levar".
Ali mesmo no debate ele faz uma demonstração relâmpago. Aplausos de todos.
Machado comenta: Diogo e sua turma poderão se transformar em escritores; os acadêmicos ali não poderão ser dançarinos. Diogo responde rápido: "Nunca é tarde". Mais palmas.
Nunca é tarde também para Lindacy Menezes. Moradora da Rocinha, a pernambucana de 55 anos pega o microfone e fala do desejo de escrever a sua história. O primeiro passo já foi dado. Seu texto "Último Cliente" está no livro "Flupp Pensa", lançado agora na Feira.
"Escrevi meio torto, porque a minha escolaridade é baixa, tenho problema de pontuação. Mas voltei à escola", diz. Criada num prostíbulo, a doméstica Lindacy trabalha desde os oito anos e quer se dedicar agora também à escrita. Gosta de ler sobre espiritismo.
Perto dela, a policial Patrícia Higino, 29, pede a palavra para falar da satisfação de escrever sobre a adrenalina de seu trabalho. Seu texto
"Melissinha" também integra a coletânea da Flupp. Leitora de Sidney Sheldon, ela trabalha num programa de prevenção ao uso de drogas da UPP do Andaraí.
"Estou adorando essa interação. Não basta só a polícia entrar, precisa do social", afirma. Ana Maria Machado concorda: "Muita gente está querendo; vai mudar essa situação".
HOMENAGENS
Foi esse o espírito que levou o jornalista Júlio Ludemir, 52, a idealizar a Flupp, partindo do exemplo da badalada Festa Literária de Paraty. Da quarta-feira da semana passada até ontem, escritores renomados participaram de debates.
Houve variados shows de música -de um coral de mil vozes das escolas cariocas até o rap de MV Bill-, apresentações de teatro, dança, exposições. Lima Barreto foi o homenageado do evento. No ano que vem será a vez do poeta Wally Salomão.
"Queríamos criar um ambiente para a literatura, com diversidade de ações e com um público diferenciado", diz o escritor Ecio Salles, um dos coordenadores da festa literária.
MOBILIDADE SOCIAL
De um dos locais da Flupp, um salão no alto do Morro dos Prazeres, se tem uma vista deslumbrante da baía da Guanabara. Ali mesmo, onde Diogo dançou o passinho para os escritores acadêmicos, era onde o tráfico fazia seus bailes funk até quase dois anos atrás.
Desde fevereiro do ano passado, a região recebeu uma UPP e a situação mudou. A ascensão social na favela e a chegada ao ensino superior com o Pro-Uni são também ingredientes que ajudam a explicar o contexto da festa inédita.
"A leitura já é reconhecida como um instrumento de mobilidade social. O livro não deve ser exclusivo da elite", afirma Ludemir, que enxerga um novo leitor na periferia, fruto da melhoria de renda, da maior escolaridade e de movimentos como os saraus.
Apesar disso e muito diferente do que ocorre no evento realizado em Paraty, a festa praticamente não atraiu a atenção das editoras. "O mercado editorial é muito pragmático e não inclui a classe C no futuro mercado no Brasil", avalia Ludemir.
Ana Maria Machado concorda que "as editoras não repararam na Flupp". Na sua análise, as editoras, que têm uma produção muito sofisticada,com best-sellers e com muitas obras traduzidas, não estão buscando esse mercado.
A saída são bibliotecas ou salas de leitura -uma será montada nos próximos meses no Morro dos Prazeres.
Ana Maria Machado, que já desenvolve projetos em morros cariocas, defende que a Academia Brasileira de Letras tenha uma abertura cada vez maior para as comunidades carentes, "para sair do gueto cultural".
E conclui, citando o escritor italiano Gianni Rodari:
"É preciso que todos tenham acesso a todos os usos da linguagem, não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo".
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