terça-feira, 13 de novembro de 2012

Último suspiro - Denise Fraga


VIDA REAL
DENISE FRAGA - denise-fraga@uol.com.br
Último suspiro
No portão do cemitério a gordinha guardava os carros chupando picolé e exibindo, feliz, a barriga e as coxas
Há dois anos, perdi minha avó. Foi uma mulher calada e trabalhadeira. Servia a mesa e ficava em pé, ao lado, sem sentar. Trabalhou a vida inteira atrás de um balcão, junto do meu avô. "Não senta que o freguês não entra" - ele dizia. Acostumou-se a ficar de pé. No fim da vida, foi sentando aqui, sentando ali, cavando seu lugar no sofá, silenciando e murchando como uma plantinha.
A morte gradativa de minha avó me fez pensar muito na vida e em como deveríamos todos poder ir morrendo assim, lentamente, para que pudéssemos ter mais chances de aprender sobre aquilo que insistimos em não aceitar.
Percebi um sinal, corri para o Rio e ainda pude ver seu último suspiro. Ver alguém morrer é coisa que não se esquece jamais.
Minha avó morreu em casa, comigo e minha mãe beijando-lhe as mãos, e nos deu a chance de compreender fisicamente o fim. Minha tristeza foi se diluindo nos seus últimos anos de falência e a beleza de seu crepúsculo foi um presente de vida pra mim.
Difícil escrever sobre isso pois parece frio, mórbido, distante. Mas resolvi tocar no assunto pela simplicidade da existência que me foi projetada no peito naqueles dias.
Antes do enterro, precisava ser feita a exumação do corpos do jazigo. Fomos eu e minha mãe -a despeito dos conselhos das tias para que não fôssemos, não era coisa boa de se ver. Mas minha mãe teimou, estavam lá os ossos de seu segundo marido, paixão de sua vida. Confesso que a acompanhei num misto de companhia solidária e curiosidade quase infantil de ver a cena completa, a morte em estado bruto, físico, o pó.
Não acreditava que iria juntar ao último suspiro de minha avó a exumação dos ossos de meu avô. No portão do cemitério, uma mulata gordinha guardava os carros enquanto chupava um picolé e dançava exibindo, feliz, a barriga e as fartas coxas que transbordavam dos seus microshorts. "Deixa solto!" Cantava alto com Renato Russo ao seu ouvido: "É preciso 'amaaar' as pessoas como se não houvesse amanhã...".
Foi sob essa trilha sonora que eu e minha mãe assistimos ao início do trabalho dos coveiros. Parecia encomendada. Em poucos minutos, lá estavam os ossos daqueles homens que mal trocavam bom-dia e agora tinham seus restos misturados. Com as lágrimas secas, nos aproximamos estarrecidas pela ironia da vida. Uma barata correu.
Minha mãe gritou. Apesar de tudo, de barata, ela ainda tinha medo. Lá fora, a gordinha cantava agora um sertanejo. A vida continuava.

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