terça-feira, 13 de novembro de 2012

João Pereira Coutinho


O Evangelho Segundo Maria
Não existe nada de mais trágico do que experimentar uma vez a morte e ser depois restituído à vida
Todos conhecemos a história bíblica de Lázaro, o homem que Jesus ressuscitou dos mortos. O que não conhecemos é a vida que Lázaro teve depois.
Como será regressar dos mortos? Como será ter o conhecimento do outro lado e voltar a cruzar o rio para o nosso lado? Será uma experiência que permite uma vida normal -e, sobretudo, uma nova morte normal?
C.S. Lewis, o conhecido escritor e pregador cristão, escreveu em "A Grief Observed", diário de seu luto depois da morte da mulher, que Lázaro é uma figura imensamente trágica, cujo destino não devemos desejar a ninguém. Nem sequer aos que mais amamos.
Porque não existe nada de mais trágico do que experimentar uma vez o ordálio aterrador da morte e ser depois restituído à vida para voltar a passar pela mesma experiência terminal. Morrer uma vez basta. Morrer duas vezes devasta.
Lembrei Lázaro, e as palavras de C.S. Lewis sobre ele, ao ler o novo livro do romancista irlandês Colm Tóibín, "The Testament of Mary" (o testamento de Maria; Viking, 112 págs.), que tem sido tema de polêmica e debate no Reino Unido.
A novela, como o título sugere, pretende ser o relato final de Maria, mãe de Jesus, sobre os acontecimentos que ficaram para trás. E, entre eles, está Lázaro: não apenas o milagre da sua ressurreição, mas o que sucedeu depois.
São as melhores páginas do livro, porque Tóibín, retomando a ideia de C.S. Lewis, não nos apresenta uma criatura redimida e feliz. Pelo contrário: Lázaro é pintado com cores negras, fantasmagóricas -um espectro silencioso e sofredor, de quem todos se afastam como se fosse a peste.
Isso, claro, se acreditarmos mesmo que aquele homem foi ressuscitado por Jesus. Eis a polêmica em torno do livro: Maria, na sua velhice, não acredita. Sim, existem relatos de relatos de relatos. Alguém testemunhou a cura de um cego, a caminhada de Jesus sobre as águas, a ressurreição de Lázaro e, evidentemente, a ressurreição do próprio Messias redentor.
Só que, para Maria, Jesus não é o Messias. É apenas o seu filho muito amado -a criança que ela educou e viu crescer na banalidade dos dias; que acompanhava o pai ao Templo em pleno Sabbath; e que, mais tarde, se rodeara fatalmente por uma turba fanática ("marginais", como ela designa os apóstolos), congregando sobre si a histeria das massas e a pena pesada das autoridades romanas (e judaicas).
Foi essa arrogante imprevidência -a imprevidência de quem se apresentara como o rei dos reis e filho de Deus- que condenara seu filho à morte, apesar das inúmeras tentativas da mãe para o resgatar de um caminho lúgubre.
Mesmo a versão oficial da crucificação é desautorizada por Maria: ela esteve lá, no Gólgota desolado. Mas jamais recebera o corpo do filho depois de morto.
Na verdade, Maria fugira antes, temendo pela sua própria vida, deixando para trás um filho agonizante. Essa fuga persegue a consciência da mãe até ao fim.
Na literatura contemporânea, existem vários exemplos de literatura "blasfema" sobre os Evangelhos -do "Cristo Recrucificado", de Nikos Kazantzakis, ao célebre "Evangelho Segundo Jesus Cristo", de José Saramago.
Mas a força do livro de Colm Tóibín não está na atitude propositadamente "blasfema" e confrontacional. Está antes na profunda ambiguidade que o autor confere ao relato de Maria.
Charlotte Moore, na revista "Spectator", resumiu o problema: o testamento de Maria, tal como escrito por Tóibín, desautoriza a construção de Jesus feita pelos seus apóstolos. Mas o escritor é audaz na forma como também desautoriza as palavras de Maria: ela é apresentada, repetidamente, como uma mulher envelhecida, amedrontada, confusa, sem o discernimento necessário para separar fatos de efabulações, fatos de fabricações.
O relato de Maria é tão dúbio como os relatos que ela considera dúbios. Isso, que para alguns críticos constitui uma fraqueza narrativa, é na verdade a maior força -literária, teológica e obviamente sacrílega- do livro de Colm Tóibín: é preciso ser um escritor de excelência para infectar de dúvida todas as dúvidas de Maria.
E, no final de seu relato, deixar o leitor, seja crente ou não crente, profundamente abalado. Um pequeno grande livro.
jpcoutinho@folha.com.br

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