Max Milliano Melo
Estado de Minas: 28/12/2012
Brasília – Desde setembro de 2009, cabe à búlgara Irina Georgieva Bokova a tarefa de conciliar diferentes interesses e visões sobre ciência, cultura e educação. Primeira mulher e primeira pessoa nascida na Europa Oriental a ocupar o cargo de diretora-geral da Unesco, organização ligada às Nações Unidas que agrega 195 países-membros, ela comandará as ações da Década para as Pessoas de Ascendência Africana, declarada pela ONU entre 2013 e 2022.
Às vésperas do início da celebração, Irina falou com exclusividade ao Estado de Minas. Segundo ela, a trágica experiência da escravidão fez com que o continente africano fosse o primeiro a experimentar um processo de globalização e moldou preconceitos e sentimentos depreciativos que ainda subjugam os negros. “Apesar de o comércio de escravos e a escravidão já não serem tolerados, alguns conceitos produzidos por esse sistema estão, hoje, infelizmente, ainda vivos. Por essa razão, a luta contra o racismo e contra a discriminação em muitas regiões do mundo continua a ser um enorme desafio”, diz.
Casada e com dois filhos, Irina, que militou no Partido Comunista de seu país, foi deputada federal, membro do Comitê de Integração da Europa e embaixadora em Mônaco e na França. Há três anos, ocupa a cadeira deixada pelo japonês Koichiro Matsuura na Unesco. Ela, agora, pretende ampliar a importância que o mundo dá à história africana, mudando o enfoque colonialista que costuma receber. “Gostaria de felicitar o governo do Brasil por tornar o ensino de história da África obrigatório em todos os níveis de escolarização”, ressalta. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Apenas 86 dos 962 sítios do Patrimônio Mundial estão localizados na África, enquanto a Europa acolhe sozinha quase 50% desses locais reconhecidos como de especial valor. Essa não seria uma distorção na própria instituição que deveria trabalhar para a promoção da diversidade cultural?
É verdade que dos 962 sítios do Patrimônio Mundial apenas 9% estão localizados na África subsaariana. Acredito que estamos fazendo tudo o que podemos fazer para atingir um maior equilíbrio. No entanto, devo salientar que a decisão de nomear locais cabe inteiramente aos Estados parte. Muitos governos africanos simplesmente não têm recursos humanos e financeiros para realizar o longo e complexo processo de preparação do dossiê de candidatura. A Unesco está empenhada em apoiá-los nesse processo. Inscrever um lugar na lista do Patrimônio Mundial traz grandes ganhos em termos de aumento de orgulho nacional, de identidade e também de bem-estar social das comunidades locais. Estamos fazendo progressos. Desde 2002, mais oito países africanos ratificaram a Convenção do Patrimônio Mundial.
A Unesco tem, portanto, um papel institucional a cumprir nessa questão.
A Unesco tem uma posição clara e forte: a proteção e a promoção da cultura africana é importante para todas as sociedades, mas também pode servir como um motor para o desenvolvimento sustentável. Desde meados dos anos 1990, numerosas iniciativas de capacitação foram lançadas no campo de Patrimônio Mundial. O nosso objetivo é atingir uma representação mais equilibrada global, incluindo a África, por meio da identificação de novas categorias de sítios e treinamento de profissionais africanos na área do Patrimônio Mundial.
A senhora também citou a falta de recursos financeiros. Como lidar com a falta de dinheiro de muitos países?
Em 2006, a Unesco criou o Fundo do Patrimônio Mundial Africano para fornecer apoio financeiro e técnico para a conservação e a proteção efetiva do patrimônio da África. O fundo visa promover a nomeação de sítios africanos e o desenvolvimento de estratégias para lidar com os desafios dos países do continente na implementação da Convenção do Patrimônio Mundial. Outra prioridade é apoiar e otimizar as indústrias culturais em toda a África no âmbito da Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, de 2005. A África tem um enorme potencial nessa área, mas as capacidades nacionais e locais devem ser reforçadas. Por um programa-piloto regional lançado neste ano, a Unesco está treinando os principais interessados, trabalhando no fortalecimento das experiências locais e criando uma plataforma de partilha de informações.
Há preconceito contra a história e a cultura da África?
De modo mais geral, o reconhecimento da cultura africana e de sua contribuição para o progresso da humanidade sempre foi um importante compromisso da Unesco. Para cumprir essa missão e construir pontes entre culturas, a organização trabalha para responder aos preconceitos persistentes que são direcionados à África e às pessoas de ascendência africana, herdados do comércio de escravos, da escravidão e da colonização. Para remediar a ignorância generalizada e mal-entendidos a respeito da cultura e da história da África, colaboramos com os mais respeitados profissionais e especialistas no tema, a fim de produzir e divulgar conhecimento preciso, equilibrado e respeitoso sobre o continente. É por essa razão que o trabalho intelectual da Unesco sobre a África continua a ser mundialmente respeitado.
A escravidão ainda é uma memória delicada em muitos países, inclusive no Brasil. Por que é importante resgatar esse período, mesmo sendo tão doloroso?
O passado tem lições valiosas para o presente e o futuro. Esse período da nossa história moldou profundamente nosso mundo e nossa percepção da alteridade. Apesar de o comércio de escravos e a escravidão já não serem tolerados, alguns conceitos produzidos por esse sistema estão, hoje, infelizmente, ainda vivos. Por essa razão, a luta contra o racismo e contra a discriminação em muitas regiões do mundo continua a ser um enorme desafio. Esses flagelos parecem minar nossas sociedades, exacerbando desigualdades e divisões. Para aumentar a conscientização sobre essa questão e combater o racismo e a discriminação, a Organização das Nações Unidas proclamou a Década para Pessoas de Ascendência Africana (2013-2022), sob o tema do reconhecimento, da justiça e do desenvolvimento.
De que forma a escravidão “moldou profundamente nosso mundo”?
O comércio de escravos e a escravidão levaram à interação inédita entre a África e o resto do mundo. Pela mistura de escravos africanos e culturas locais, novos idiomas, danças, músicas, religiões e tradições surgiram. Algumas expressões culturais contemporâneas, como o jazz, o reggae, o hip-hop e a street art, estão intimamente ligadas a essa história. No âmbito das suas novas direções e perspectivas, o Projeto Rota do Escravo: Resistência, Liberdade, Patrimônio busca articular os aspectos dessa memória ainda relevante nas sociedades de hoje, a fim de transformar capítulos lamentáveis de nossa história em uma poderosa fonte de inspiração para gerações futuras. A Unesco defende a “alfabetização cultural”.
O mundo continua analfabeto em relação à cultura, à história e ao legado africanos?
Entre nossos diferentes programas de educação e cultura, um dos mais ambiciosos é O uso pedagógico da História Geral da África, que quer renovar o ensino da história da África não só na África, mas em outras regiões do mundo. Essa história, amplamente contada a partir da perspectiva de colonizadores, tem sido muitas vezes distorcida. O projeto busca desenvolver materiais curriculares para o ensino primário e escolas secundárias, além de diretrizes para o ensino da história africana no ensino superior a partir da perspectiva africana. Materiais adequados à educação formal e não formal serão também produzidos.
Inclusive no Brasil?
A Unesco tem visto o governo brasileiro na tradução dos oito volumes sobre o tema em português e na implementação do programa. A esse respeito, gostaria de felicitar o governo do Brasil por tornar o ensino da história da África obrigatório a todos os níveis de ensino.
Como a promoção da diversidade cultural ao redor do mundo pode ajudar a solucionar os problemas locais da África, como
guerras civis e degradação ambiental?
A promoção da diversidade cultural incentiva a diversidade entre os diferentes povos ao redor do mundo, promovendo o respeito à multiplicidade das culturas locais e nacionais. Sociedades africanas podem ter sido as primeiras culturas globalizadas da história. Assim, esse movimento pode nos ajudar a compreender o tremendo impacto das tradições africanas na construção das sociedades contemporâneas, tanto nas Américas e no Caribe quanto na Europa, no mundo árabe-islâmico e na Ásia. A melhor compreensão dos valores comuns que unem os povos contribui para a construção de um mundo mais positivo e uma atitude mais respeitosa com a África e as culturas africanas.
Como essa estratégia da Unesco é posta em prática?
Há uma série de atividades culturais e convenções que buscam promover a cooperação internacional na salvaguarda do patrimônio material e imaterial e de expressões da cultura contemporânea. Com referência ao mais famoso desses tratados, a Convenção do Patrimônio Mundial, a Unesco promove vários projetos de preservação, como das florestas africanas, particularmente na parte central do continente, que são também a casa de indígenas pigmeus Baka. Isso deve ser considerado uma estratégia de gestão, dado o papel que eles representam na conservação sustentável dos recursos da floresta.
De onde vêm os recursos para isso?
A Convenção sobre a Proteção e a Promoção da Diversidade das Expressões Culturais tem como objetivo promover o desenvolvimento sustentável e a redução da pobreza nos países em desenvolvimento, por meio do reforço cultural local das indústrias. O Fundo Internacional para a Diversidade Cultural (IFCD, no valor de mais de US$ 5,6 milhões em contribuições voluntárias) fornece suporte para 48 projetos, dos quais 26 estão em 17 países africanos. Eles variam de objetivo. Vão desde medir a contribuição econômica da cultura do Zimbábue nas indústrias até o estímulo ao empreendedorismo criativo na África do Sul, passando pelo desenvolvimento de um plano estratégico para implementação de políticas culturais no Togo.
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