Oshima mon amour
Com obra marcada por rupturas e erotismo, cineasta Nagisa Oshima, de 'O Império dos Sentidos', morre aos 80 anos no Japão
Argos Films/Oshima Productions/The Kobal Collection | ||
Cena do filme "Império dos Sentidos" (1976), do cineasta Nagisa Oshima |
O escândalo foi um ponto crucial na carreira do magistral cineasta, que morreu ontem de pneumonia, aos 80 anos, em Kanagawa, ao sul de Tóquio.
"O Império dos Sentidos" foi também o momento mais radical de uma carreira marcada pelo radicalismo. O filme lembra muito as ideias do francês Georges Bataille sobre a proximidade entre amor e morte. Mas não as ilustra. E havia outras ideias ali: esse amor existia em contraponto (quase oposição) ao militarismo japonês, que levaria o país à catástrofe na 2ª Guerra.
Oshima foi o primeiro nome da "nouvelle vague japonesa" a chamar a atenção mundial. Tratava-se de um grupo de jovens cineastas que, no começo dos anos 1960, rompeu com os estúdios japoneses, optando pela independência.
A divergência era tanto formal (resistiam aos estilos tradicionais) como política (condenavam o conformismo dos velhos mestres).
Logo nomes como Shohei Imamura ou Seijun Suzuki, entre outros, tornaram-se decisivos para o jovem cinema mundial de então.
O primeiro impacto veio de Oshima, com "O Túmulo do Sol", "Conto Cruel da Juventude" e "Noite e Névoa no Japão", três filmes de 1960 que fugiam ao estilo tradicional e traziam a juventude para o centro dos acontecimentos, embora feitos antes da ruptura com o poderoso estúdio Shochiku.
A maturidade de Oshima chegou no final dos anos 1960, quando produziu obras capitais, como "O Enforcamento", "Garoto Toshio" e "A Cerimônia", esta última de 1970. Todas afirmavam essa proximidade entre vida e morte que se tornaria explícita em "O Império dos Sentidos", mas, sobretudo, deixavam claro o inconformismo em relação aos rumos culturais e políticos dos Japão.
Na década de 1970 predominou o esforço para entender a sociedade nipônica e sua história. A mudança é visível em "O Império da Paixão" (1978). A fama mundial levou Oshima a produções internacionais que pouco acrescentaram a seu trabalho, como "Furyo, em Nome da Honra" (1982) e, em especial, "Max Mon Amour" (1986).
O fracasso deste último o levou a trabalhar para a televisão, antes da hemorragia cerebral de 1996, que o forçou a um longo período de recuperação. Oshima ainda pôde realizar em 1999 o pouco inspirado "Tabu", em que novamente buscava um tema polêmico: a homossexualidade entre samurais.
Desde então, o cineasta nascido em 1932 em Okayama recolheu-se: o que tinha a dizer, desde os tempos de estudante de direito com ideias de esquerda, em Kyoto, estava dito. E, diga-se, bem dito.
ANÁLISE
Diretor revolucionário queria produzir uma nova realidade
LÚCIA NAGIBESPECIAL PARA A FOLHANagisa Oshima contou que certa vez um jornalista alemão "extremamente impertinente" lhe perguntou por que ele fazia cinema. A resposta que lhe ocorreu no momento foi: "Para entender o tipo de pessoa que eu sou".O jornalista retrucou que, se era só isso, ele podia fazer filmes em 8 mm, não precisava de formato scope e cor. Oshima então refletiu que o elemento constitutivo de seu cinema era o belo e que, para isso, ele precisava de cor, scope e muito mais.
No meu entender, a verdadeira resposta está num parágrafo que ele escreveu num de seus muitos artigos: "O que os cineastas realmente querem é filmar a morte. E também filmar homens e mulheres (ou homens e homens, mulheres e mulheres, pessoas e animais) praticando o sexo".
A obra desse maravilhoso e revolucionário diretor de cinema foi exatamente isto: filmar os extremos, o limite do cinema com a vida, e desta com a morte. Seu lema era transformar o cinema num modo de vida, que envolvia a equipe e os atores. Seus filmes tinham o intuito não apenas de reproduzir, mas de produzir uma nova realidade.
E foi isso que sua obra-prima, "O Império dos Sentidos", alcançou: nunca mais a vida dos atores e técnicos que participaram dessa aventura de sexo e amor ao vivo seria a mesma, e o cinema erótico também se transformaria para sempre.
Em meu livro "World Cinema and the Ethics of Realism" (cinema do mundo e a ética do realismo), chamei de "atitude ética" a escolha de Oshima de filmar de modo explícito a beleza do sexo extremo que culmina em morte.
Seu compromisso com a verdade resumia o ideal de toda uma geração de cineastas interessados em explorar as propriedades transformadoras do cinema. Oshima foi o líder inconteste da chamada "nouvelle vague japonesa" nos anos 1960 e 1970.
Porta-voz em seus abundantes escritos e aparições na mídia desse grupo revolucionário, teve a coragem de combater abertamente o tratado de segurança nipo-americano ("Conto Cruel da Juventude"), o stalinismo que penetrava o meio estudantil ("Noite e Névoa no Japão") e a discriminação dos coreanos ("O Enforcamento").
E ninguém como ele soube representar o homossexualismo transbordante entre samurais e militares ("Tabu" e "Furyo: Em Nome da Honra").
Seu ato mais ousado foi o de sexualizar a nação, transformado o círculo do Sol da bandeira japonesa em manchas vermelhas de sangue, ou negras de morte, às quais estudantes rebeldes ateiam fogo e nas quais casais incestuosos e estupradores se envolvem ("Maníaco à Luz do Dia", "Canções Lascivas do Japão", "Diário de um Ladrão de Shinjuku").
Seus filmes eram destrutivos e autodestrutivos e, por isso, Oshima os comparava à fênix, que morre e renasce de suas próprias cinzas.
LÚCIA NAGIB é professora de cinema na Universidade de Leeds (Inglaterra) e autora de "Nascido das Cinzas: Autor e Sujeito nos Filmes de Oshima" (Edusp).
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