quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Raul Juste Lores

folha de são paulo

O elitismo da "compra" do Belas Artes

A campanha dos órfãos do cinema Belas Artes parece que funcionou. A prefeitura estuda desapropriar o velho cinema e transformá-lo em "centro cultural".
O edifício tem a fachada (!!!) tombada, o que dificultava a transformação em espaço comercial.
Certamente é uma campanha impulsionada por cinéfilos muito bem intencionados. Eu mesmo ia lá quase toda semana --e raramente via uma sessão cheia, mesmo nos finais de semana.
Aliás, mesmo depois do seu fechamento, não houve uma superlotação dos diversos outros cinemas "alternativos" na mesma área da cidade. Quem frequenta o Cinesesc, o Cine Livraria Cultura, as dez salas de Reserva Cultural e Espaço Itaú, todas na mesma região do Belas Artes, sabe que a ocupação durante a semana chega a duras penas a 30%. Poltronas vazias são fáceis de se achar nesses lugares mesmo no domingo à noite. A multidão que faz barulho nas redes sociais poderia estar visitando mais as salas para que a sina do Belas não se repita com seus vizinhos.
Cinema cheio em São Paulo você encontra em shopping na temporada do Oscar. Amigos que foram ao Cidade Jardim ver "Amour", o brilhante filme de Michael Haneke que ganhou a Palma de Ouro, relatam que metade da plateia se ocupava com seus celulares mandando torpedos e atualizando o Facebook durante o filme.
Mas, na Cidade Tiradentes, onde moram 220 mil paulistanos, o único grande equipamento cultural é o CEU. Em Heliópolis, 125 mil habitantes, cinema só mesmo o Cine Favela que já usou até paredes do hospital local para as projeções. O dinheiro para se ressuscitar o cinema da rua Consolação seria bastante mais bem-vindo nessas áreas distantes, aonde não há lei Rouanet que convença patrocinadores a descobri-las.
Na periferia, também não existe uma constelação de centros culturais como o da Fiesp, o Itau Cultural, o Masp, o futuro IMS, a galeria do Conjunto Nacional, o Cervantes e afins, todos na Paulista.
Seria uma otima noticia se, em vez de exigir do poder público dinheiro para o seu cinema, os órfãos do Belas Artes criassem uma campanha para reergue-lo sem dinheiro público. Uma associação de amigos, com sócios pagando anuidade, festas anuais para arrecadar fundos, patrocinadores privados --vizinho da Paulista e do futuro bar-restaurante Riviera, não faltaria gente interessada.
Nossa crença é de que dos cofres dos governos o dinheiro jorra sem parar. Mas seria melhor se a frase "a prefeitura deveria pagar x, patrocinar y, reformar z" fosse concatenada com "quero pagar ainda mais impostos para subsidiar x" e esticada até a pergunta "se pagar mais, esse dinheiro será bem gerido/administrado?". Questões importantes antes de qualquer campanha que obrigue o governo a gastar mais. Você quer dobrar o IPTU?
Não sei o que o antigo dono do Belas Artes acha da campanha, mas "estatizar" cinema extinto é inacreditável. Precisa dinheiro da prefeitura para sustentar mais um cinema na Paulista?
O prefeito Fernando Haddad falou corretamente em seu discurso de vitória que São Paulo era uma das cidades mais desiguais do mundo. Patrocinar cineclube no circuito Paulista-Consolação não ajuda a mudar esse quadro.
*
P.S.: Quem precisa de, mais que tombamento, atenção de patrimônio histórico e afins, é o vizinho de frente do Belas Artes, o belo edifício Anchieta. Obra solitária dos cariocas irmãos Roberto em São Paulo, com um terraço/salão de festas com uma vista embasbacante da avenida Paulista. Pioneiros modernos no Brasil, é deles o lindo aeroporto Santos Dumont. Boa arquitetura em São Paulo é tão rara quanto sala de cinema na nossa periferia.
Arquivo pessoal
O jornalista Raul Juste Lores é correspondente da Folha em
Nova York, ex-correspondente em Pequim e Buenos Aires e ex-editor
do caderno 'Mercado', e bolsista da fundação Eisenhower Fellowships. Escreve às quartas-feiras no site. Siga: @rauljustelores

Nenhum comentário:

Postar um comentário