Gracie Santos
Estado de Minas: 15/02/2013
Não gosto de matérias na primeira pessoa; de filmes sim, os bons, claro. Textos assim soam melhor na literatura. No jornal, parece que o autor quer criar intimidade ou se mostrar demais. No caso dos filmes, acho todos corajosos, alguns “umbiguentos” demais, os autores se perdem em si mesmos. Outros somam espontaneidade e profissionalismo. Voltando ao texto... agora, por exemplo, se estivesse no seu lugar, pode ser que nem passasse dessa frase. Mas o cineasta Kiko Goifman, de 41 anos, desafiou-me a escrever assim. E o poeta e escritor Fernando Pessoa convenceu-me a seguir. Quem sabe não o convencem também? Kiko me sugeriu que fizesse a matéria na primeira pessoa, já que a discussão gira em torno da coragem de o cineasta se expor na própria obra. Álvaro de Campos escreveu: “Basta de ser para si a primeira pessoa do singular de qualquer pronome ou verbo. Sejamos a Pessoa Absoluta do Plural Incomensurável. Menos que isto é arte do passado! Acabemos com o não haver machinas no verso, e com o haver versos com a mesma medida para tudo – fato-feito da inspiração barateira”. Pessoal sim, mas universal.
No limite entre vida e arte, o cinema alimenta narrativa que não é nova, remonta aos seus primórdios, quando o diretor registrava cenas caseiras ou documentava fatos próximos. A produção contemporânea tem obras cada vez mais pessoais. Autores tentam conquistar o afeto do pai, encontrar a mãe biológica, acompanham a gestação do filho e envolvem a família em determinada viagem. São filmes que podem incomodar pelo “excesso” de exposição do autor. Em janeiro, Raymond Walravens (diretor e curador do Festival de Cinema Independente de Rialto e do World Cinema, ambos da Holanda), durante a Mostra de Cinema de Tiradentes, aconselhou realizadores a deixar esse cinema de lado e partir para temas que interessem ao mundo.
Na mesma mostra, Maria Clara Escobar, de 24, foi premiada com o filme Os dias com ele, que fez “para tentar se encontrar afetivamente com o pai distante.” O dramaturgo Carlos Henrique Escobar vive há cerca de 13 anos em Portugal. “Os processos artísticos me interessam para me transformar, experimentar novas coisas. Sou de uma geração que não vê a arte como algo rigoroso, ela pode ser fabricada na intimidade, domesticamente, como registro. Consideramos esse limite mais tênue”, afirma. Em Tiradentes, ela conquistou (além do prêmio) o reconhecimento do público. “Muita gente veio falar comigo, sensibilizou-se, identificou-se com o filme, que tem um pouco, na essência, dessa discussão que você propõe. Para mim, o que toca neste momento são coisas sentimentais, a reflexão, como documentar alguém, como enquadrar uma pessoa.”
Como o pai era “uma figura ausente,” Maria Clara o idealizava “para tapar um buraco”. “Vou tentando construir essa imagem e ele, sucessivamente, recusa-se a ser congelado. Há grande transformação para entender a possibilidade de uma relação, conflitos e a reconstrução do tempo interior. Foi preciso negociar a imagem e o espaço do outro. Tudo numa tentativa de amadurecimento. E ele se mostrou personagem muito forte, difícil de negociar”, conta a diretora. Ela decidiu, então, excluí-lo do processo de montagem. “Até por entender que um consenso harmonioso nunca vai ocorrer entre nós.” Se Maria Clara tivesse que dar um nome a esse “gênero” cinematográfico, seria “amador profissional”.
O pulo do gato
Cao Guimarães, de 47 anos, diretor de Otto (sobre a gravidez de sua mulher e o nascimento do filho), vencedor do Festival de Brasília do ano passado, acha fascinante a cultura do cinema amador. “Amater é cineasta amador e sou cineasta amador com muita honra, me sinto numa composição ótima, sou independente do mercado ou de qualquer coisa”, analisa. Ele lembra que nas artes visuais isso é recorrente e cita o exemplo da francesa Sophie Calle, que, na década de 1970, começou a se misturar com seu trabalho. “O autor traz energia vital para sua arte e se aproxima do espectador e esse é o pulo do gato, está aí a universalidade da arte”, afirma. Confesso ao diretor que quando ele começou a narrar o filme, pensei: “O Cao pirou! Que coragem”. Ele conta que inicialmente havia pensado em deixar o próprio Otto narrar, 20 anos depois, mas mudou de ideia. “Percebi que se a minha mulher e meu filho estavam sendo expostos, seria mais sincero de minha parte se eu estivesse ali.”
Ventos de Valls, de Pablo Lobato, de 36, abriu a Mostra de Cinema de Tiradentes. Retrata viagem da família dele (com esposa e filha, inclusive) à cidade da Espanha. São pessoas que retornam ao lugar onde viviam depois de anos da fuga de navio para o Brasil. O cinema que o diretor gosta de fazer e com o qual se identifica “é o que está mais próximo do fazer amador, no bom sentido, com amor”. Ele procura “pensar cinema como arte” e o fato de usar pessoas próximas tem muito a ver com “a vibração que elas passam” pela proximidade. “Falamos para ninguém e para todo mundo”, diz, citando Nietzsche (Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém). O cineasta acha que esse tipo de filme está “muito próximo da liberdade do gesto.” Ficou feliz com a receptividade do longa em Tiradentes (“nunca fui tão procurado pelo público”). Pablo diz que usa Ana (a filha) como componente de algo maior. “É um filme sobre a saga dos Panadés, ela é personagem da viagem. A obra se posiciona no lugar da infância dela e deles (no pós-guerra, na Catalunha).”
Kiko Goifman, autor de 33 (documentário sobre sua busca pela mãe biológica, de 2004, selecionado para vários festivais internacionais) e de Filmefobia (que revela inclusive a fobia do diretor – vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2008) gosta de trabalhar com equipe mínima, “que dá maior intimidade e permite o registro mais leve”. O diretor lembra que “filmes em primeira pessoa não têm sequer making of, “são o making of deles mesmos.” Em Filmefobia, decidiu se expor porque estava expondo todo mundo; filmou-se desmaiando. Já 33, ele garante, foi terapêutico.
“Tanto que nem penso mais na questão. É um filme sobre o tabu da adoção e dou a cara a tapa. Incomodava-me ter que esconder que sou adotado. Não incomoda mais. Mas o resultado tem que ser interessante, senão se torna a terapia mais cara do mundo.” Durante a entrevista, confessei a Kiko que 33 me incomodou, conheço a mãe adotiva dele e, como mãe, tomei as dores dela. Kiko me contou que não fui a única, ele foi muito cobrado. “O processo foi doloroso, ouvia muita gente dizer ‘você já tem mãe’. A primeira coisa que fiz foi conversar com ela, que aprovou. Hoje, instituições que trabalham com adoção exibem o filme.”
Memória
Quebra-cabeças
Na obra La filature, de 1981, Sophie Calle manda contratar um detetive particular para segui-la e constituir um relato sobre suas atividades ao longo de um dia. Ela não conhece a pessoa que a seguirá, mas pede a um terceiro que se coloque num ponto de seu caminho e fotografe as ações de qualquer um que pareça segui-la. Num quebra-cabeças cujas peças são imprecisas, ela expõe esses diferentes olhares cruzados: os dois registros fotográficos
e três relatórios, o dela própria sobre seu dia, o do detetive contratado e o dessa terceira pessoa sobre as ações do detetive.
No limite entre vida e arte, o cinema alimenta narrativa que não é nova, remonta aos seus primórdios, quando o diretor registrava cenas caseiras ou documentava fatos próximos. A produção contemporânea tem obras cada vez mais pessoais. Autores tentam conquistar o afeto do pai, encontrar a mãe biológica, acompanham a gestação do filho e envolvem a família em determinada viagem. São filmes que podem incomodar pelo “excesso” de exposição do autor. Em janeiro, Raymond Walravens (diretor e curador do Festival de Cinema Independente de Rialto e do World Cinema, ambos da Holanda), durante a Mostra de Cinema de Tiradentes, aconselhou realizadores a deixar esse cinema de lado e partir para temas que interessem ao mundo.
Na mesma mostra, Maria Clara Escobar, de 24, foi premiada com o filme Os dias com ele, que fez “para tentar se encontrar afetivamente com o pai distante.” O dramaturgo Carlos Henrique Escobar vive há cerca de 13 anos em Portugal. “Os processos artísticos me interessam para me transformar, experimentar novas coisas. Sou de uma geração que não vê a arte como algo rigoroso, ela pode ser fabricada na intimidade, domesticamente, como registro. Consideramos esse limite mais tênue”, afirma. Em Tiradentes, ela conquistou (além do prêmio) o reconhecimento do público. “Muita gente veio falar comigo, sensibilizou-se, identificou-se com o filme, que tem um pouco, na essência, dessa discussão que você propõe. Para mim, o que toca neste momento são coisas sentimentais, a reflexão, como documentar alguém, como enquadrar uma pessoa.”
Como o pai era “uma figura ausente,” Maria Clara o idealizava “para tapar um buraco”. “Vou tentando construir essa imagem e ele, sucessivamente, recusa-se a ser congelado. Há grande transformação para entender a possibilidade de uma relação, conflitos e a reconstrução do tempo interior. Foi preciso negociar a imagem e o espaço do outro. Tudo numa tentativa de amadurecimento. E ele se mostrou personagem muito forte, difícil de negociar”, conta a diretora. Ela decidiu, então, excluí-lo do processo de montagem. “Até por entender que um consenso harmonioso nunca vai ocorrer entre nós.” Se Maria Clara tivesse que dar um nome a esse “gênero” cinematográfico, seria “amador profissional”.
O pulo do gato
Cao Guimarães, de 47 anos, diretor de Otto (sobre a gravidez de sua mulher e o nascimento do filho), vencedor do Festival de Brasília do ano passado, acha fascinante a cultura do cinema amador. “Amater é cineasta amador e sou cineasta amador com muita honra, me sinto numa composição ótima, sou independente do mercado ou de qualquer coisa”, analisa. Ele lembra que nas artes visuais isso é recorrente e cita o exemplo da francesa Sophie Calle, que, na década de 1970, começou a se misturar com seu trabalho. “O autor traz energia vital para sua arte e se aproxima do espectador e esse é o pulo do gato, está aí a universalidade da arte”, afirma. Confesso ao diretor que quando ele começou a narrar o filme, pensei: “O Cao pirou! Que coragem”. Ele conta que inicialmente havia pensado em deixar o próprio Otto narrar, 20 anos depois, mas mudou de ideia. “Percebi que se a minha mulher e meu filho estavam sendo expostos, seria mais sincero de minha parte se eu estivesse ali.”
Ventos de Valls, de Pablo Lobato, de 36, abriu a Mostra de Cinema de Tiradentes. Retrata viagem da família dele (com esposa e filha, inclusive) à cidade da Espanha. São pessoas que retornam ao lugar onde viviam depois de anos da fuga de navio para o Brasil. O cinema que o diretor gosta de fazer e com o qual se identifica “é o que está mais próximo do fazer amador, no bom sentido, com amor”. Ele procura “pensar cinema como arte” e o fato de usar pessoas próximas tem muito a ver com “a vibração que elas passam” pela proximidade. “Falamos para ninguém e para todo mundo”, diz, citando Nietzsche (Assim falava Zaratustra – Um livro para todos e para ninguém). O cineasta acha que esse tipo de filme está “muito próximo da liberdade do gesto.” Ficou feliz com a receptividade do longa em Tiradentes (“nunca fui tão procurado pelo público”). Pablo diz que usa Ana (a filha) como componente de algo maior. “É um filme sobre a saga dos Panadés, ela é personagem da viagem. A obra se posiciona no lugar da infância dela e deles (no pós-guerra, na Catalunha).”
Kiko Goifman, autor de 33 (documentário sobre sua busca pela mãe biológica, de 2004, selecionado para vários festivais internacionais) e de Filmefobia (que revela inclusive a fobia do diretor – vencedor do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro em 2008) gosta de trabalhar com equipe mínima, “que dá maior intimidade e permite o registro mais leve”. O diretor lembra que “filmes em primeira pessoa não têm sequer making of, “são o making of deles mesmos.” Em Filmefobia, decidiu se expor porque estava expondo todo mundo; filmou-se desmaiando. Já 33, ele garante, foi terapêutico.
“Tanto que nem penso mais na questão. É um filme sobre o tabu da adoção e dou a cara a tapa. Incomodava-me ter que esconder que sou adotado. Não incomoda mais. Mas o resultado tem que ser interessante, senão se torna a terapia mais cara do mundo.” Durante a entrevista, confessei a Kiko que 33 me incomodou, conheço a mãe adotiva dele e, como mãe, tomei as dores dela. Kiko me contou que não fui a única, ele foi muito cobrado. “O processo foi doloroso, ouvia muita gente dizer ‘você já tem mãe’. A primeira coisa que fiz foi conversar com ela, que aprovou. Hoje, instituições que trabalham com adoção exibem o filme.”
Memória
Quebra-cabeças
Na obra La filature, de 1981, Sophie Calle manda contratar um detetive particular para segui-la e constituir um relato sobre suas atividades ao longo de um dia. Ela não conhece a pessoa que a seguirá, mas pede a um terceiro que se coloque num ponto de seu caminho e fotografe as ações de qualquer um que pareça segui-la. Num quebra-cabeças cujas peças são imprecisas, ela expõe esses diferentes olhares cruzados: os dois registros fotográficos
e três relatórios, o dela própria sobre seu dia, o do detetive contratado e o dessa terceira pessoa sobre as ações do detetive.
Nenhum comentário:
Postar um comentário