terça-feira, 23 de julho de 2013

Vitor Gomes Pinto - Como nascer na China‏

População do gigante asiático começará a diminuir após 2030, a partir da marca de 1,4 bilhão de habitantes 


Vitor Gomes Pinto

Escritor, analista internacional


Estado de Minas: 23/07/2013 


O diretor da fantástica cerimônia de abertura das Olimpíadas de 2008, em Pequim, Zhang Yimou, residente na cidade de Wuxi, está sendo acusado do crime de ter sete filhos. Pouco importa o fato de que os fez com quatro mulheres, duas sob matrimônio e duas amantes, e sim que fraudou a “política do filho único”, criada, em 1979, por Deng Xiao Ping. À época, o governo dizia: “Um filho é bom. O governo cuidará de você quando envelhecer”. No entanto, hoje o benefício pago pelos pais que não têm direito a qualquer tipo de aposentadoria ou por um filho falecido varia entre míseros R$ 36 e R$ 71, tornando insustentável a prática costumeira conhecida como 2-1-4 (um casal que sustenta um filho e quatro pais). Em Pequim há 400 casas de cuidados para idosos, contudo a permissão pelo filho não pode ser obtida quando ele já faleceu e então o acesso é negado.

Nesses 34 anos, a política impediu 400 milhões de nascimentos, mas agora que a taxa de fertilidade baixou para algo entre 1,5 (dados oficiais) e 1,2 filho por mulher, os altos níveis de crescimento econômico estão ameaçados pelo declínio acelerado na oferta de mão de obra. Em consequência, Xi Jinping e Li Keqiang, recém-empossados na direção máxima do Partido Comunista Chinês PCC), acenam com a mudança nas regras para 2015, quando permitiriam dois filhos por casal.

O tipo de capitalismo tóxico praticado na China tem muitas outras maneiras de influir no crescimento populacional. Em Changzi, milhões de trabalhadores de minas de carvão ao norte do Rio Huai, que receberam do governo fogões com caldeiras a lenha para se aquecerem no inverno, devido à poluição, vivem 5,5 anos menos que os residentes na margem sul. Meninas são abortadas ou logo descartadas e hoje a razão de sexo ao nascer é de 117 homens para 100 mulheres (no Brasil é de 105:100).

Ma Jiang, um dos mais lidos autores chineses no exílio (vive em Londres), acaba de lançar seu novo livro – Estrada escura (Dark road, Penguim Ed., sem tradução em português) –, que se segue a obras sobre a repressão da Praça Tiananmen e a dura realidade da vida no Tibete. Um casal, Kongzi e Meiji, que tem uma menina, quer um filho homem, pois ele é descendente de Confúcio na 76ª geração e considera seu dever sagrado dar continuidade à linhagem. Ela, aos 20 anos, engravida e esconde dos fiscais a interrupção da menstruação e os resultados dos exames pélvicos obrigatórios, mas sua aldeia é alvo da brigada de controle populacional, que prende e tortura as mulheres até que confessem e então as submetem ao aborto forçado, à colocação de DIU (dispositivo intrauterino) e a uma multa equivalente a três a 10 vezes os rendimentos anuais da família, saqueando e incendiando a residência em caso de não pagamento. Os dois optam pelos terríveis caminhos que levam a Guangdong (Cantão), no Sul, a terra das fábricas de bugigangas vendidas aos ocidentais, e se transformam em fugitivos do planejamento familiar. O livro é fruto das viagens ao interior e da convivência com o povo, podendo ser lido como uma reportagem, tal o seu realismo.

Meiji sobrevive em aterradoras condições até que aborta, ao oitavo mês. Apesar da injeção de formaldeído aplicada ao feto, a criança nasce para ser, finalmente, estrangulada pelo médico obstetra. Mais tarde o casal tem uma menina que é vendida aos cartéis de prostituição. A viagem os faz conviver com os rios poluídos e com o desespero típico da vida na zona rural, levando-os aos limites do milagre econômico chinês. Frequentes referências são feitas a grandes tragédias como a revolução cultural de Mao Tsé-tung, as epidemias de Sars (síndrome respiratória aguda grave) de 2003 e do leite infantil contaminado com a resina plástica melamine, em 2008, os campos de trabalho de prisioneiros que fabricam de tudo para exportação, a perseguição aos adeptos da tolerância da filosofia falum gong, os quase 1,5 milhão de deslocados pela barragem das Três Gargantas, no Rio Yangtsé, além de se referir a práticas comuns como a venda de placentas e fetos como iguarias e petiscos.

A população chinesa começará a diminuir após 2030, a partir da marca de 1,4 bilhão de habitantes, devido ao crescimento econômico e da migração. Até lá, quem tem dinheiro, como Zhang Yimou continuará pagando as multas ou levando a parceira para fazer o parto em Cingapura, Hong Kong ou nas precárias clínicas das localidades fronteiriças do Vietnã. Para todos os demais nada será diferente com as mudanças na política populacional propostas pelo governo. As mulheres que se livrarem da esterilização compulsória não mais serão perseguidas pelo segundo filho, e sim pelo terceiro.

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