Estado de Minas: 24/08/2013
Caetano Veloso abre os braços e pergunta: Por que não?. Provocador em 1967, atual em 2013 |
A mais civilizada das artes é a conversa. Sem ela, o terreno está aberto para o exercício arbitrário do poder. Quem conversa sabe ouvir. Quem não ouve só entende a linguagem da submissão. A política, deixando de lado as teorias, nada mais é que o território do diálogo. As pessoas conversam não apenas para concordar, mas fundamentalmente para deixar claras as divergências. Como dizia o saudável João da Ega, de Os Maias, de Eça de Queirós, o desacato é condição do progresso. Sem um bom papo, nem a discórdia é possível e com isso não se avança.
Por isso é preocupante o atual cenário de monólogos que não se misturam, de pessoas retiradas em células, em casulos eletrônicos nos quais trocam palavras apenas entre iguais. A anulação do debate e o reforço de preconceitos pelo assentimento do outro têm gerado um território inimigo da política. As pessoas que amam odiar a política estão satisfeitas com seus pares e espalham o anátema a quem pensa diferente.
Os comentários cheios de ira que circulam na rede são a prova da solidão que se multiplica aos milhões. Sem precisar argumentar, sobram imprecações ou manifestações de poder discricionário. Ninguém quer saber de debater, de ouvir e de realmente partilhar. No sítio defeso da internet, o outro é sempre ameaça.
Essa sensação vem se espalhando de forma perigosa até mesmo em setores que têm história rica de democracia e sempre prezaram o jogo político. Como os músicos, por exemplo. Nos anos 1960, mesmo com grandes diferenças estéticas, artistas eram ponta de lança do projeto de fazer a sociedade pensar em seus rumos. Com isso, criaram-se correntes, movimentos e coletivos, que, mesmo apontando para horizontes distintos, tinham capacidade de diálogo e mobilização.
Não é por acaso que, no Brasil, a música popular ocupe lugar tão destacado no nosso jeito de ser e pensar o país. O que os escritores representam em alguns lugares, como a França, cantores e compositores cumprem no nosso destino de nação. Gostamos de saber o que Chico e Caetano pensam de política, do rap, dos índios. Achamos que um bom samba retrata o país melhor que o cinema, por exemplo.
O processo de redemocratização foi animado em comícios cheios de artistas populares. Canções como Pelas tabelas, que funde o destino pessoal com o processo mais amplo de criação do país, é uma espécie de síntese dos dois lados do coração brasileiro. As ruas cantam o que vai na alma. É por isso que os artistas, com sua mobilização, ajudaram a politizar o Brasil quando ele mais precisou.
Mas está faltando conversa. A recente divisão da classe artística acerca do processo de arrecadação e distribuição de direitos autorais deixou de ser debate político para se tornar disputa de poder. Não é nada bom ver gente que sempre esteve do mesmo lado trocando ofensas por discordâncias que deveriam ser resolvidas na mesa. Não se trata de consenso, mas de conflito mediado por argumentos. Resumindo: de fazer política.
Os artistas da música popular estão em pé de guerra. Por trás disso não se vê o estatuto da criação, mas de que forma ela pode render mais, ainda que não para todos. Na verdade, o jogo de interesses impede o diálogo. Ainda que alguns apontem que a divisão se dá entre concepções modernas e atrasadas de direito à propriedade e tecnologia, o que se observa é a incapacidade de se colocar no lugar do outro. Os músicos não estão em harmonia.
Neste momento em que a sociedade parece descrer da política e a juventude procura formas mais imediatas de inserção no jogo público, os músicos não podem representar o que eles mesmos ajudaram a superar: a arrogância dos que estão, por algum motivo, próximos do poder político e econômico. A MPB foi uma escola de participação para muita gente. Não pode perder essa marca e criar cisões que não valorizam ninguém.
Sem temperança A mesma sensação de falta de diálogo escorreu da discussão entre o presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, e o ministro Ricardo Lewandowski. Por uma discordância em torno de questão técnica, Barbosa acusou o colega de fazer chicana, o que, no repertório jurídico, é ofensa grave. O mal-estar cresceu com a recusa do presidente em se retratar no momento da ofensa, o que significa confirmar a intenção injuriosa.
Não se trata de temperança que deveria dirigir as ações dos magistrados, mas, novamente, da incapacidade de dialogar. As diferenças entre os dois, que se traduzem em concepções jurídicas e políticas distintas em torno da arrastada Ação Penal 470, anularam não apenas o argumento do outro, mas sua pessoa integral.
O fato de a corte simbolizar para os brasileiros o ápice do sistema em que as divergências devem ser dirimidas à luz da lei torna a situação ainda mais preocupante. Quando não pode apelar para o Supremo, por sua incapacidade de superar conflitos que parecem ter inspiração mais psicológica que política, o cidadão perde a referência do universal que sustenta a lei.
Pode-se argumentar que Barbosa, com sua incontida inclinação para responder de bate-pronto, esteja inaugurando um momento menos hipócrita, que se traduziria, com o tempo, em ambiente mais transparente e verdadeiro. A se louvar em seu destempero o fato de não duplicar a moral entre a conveniência de um lado e a lei de outro. Ele não falaria pelas costas, o que é uma vantagem.
No entanto, em política – e é disso que se trata – até a raiva precisa ser democrática. Se apenas o presidente tem o direito de ofender, cria-se um regime de tirania. Se há um lugar em que falar e ouvir não deveria ser contido pelo relógio, esse espaço é a corte. Assim como os chefes indígenas, que falam sem se preocupar em serem ouvidos, os ministros precisam fazer a palavra circular. Eles são portadores.
Esses fatos, sintomas da falta de conversa, podem afetar, e muito, o tempo político que se avizinha. Não podemos cair no cinismo de que a política não serve para nada e de que nesse campo são todos iguais. Não são. E é para não chafurdar no pântano da alienação satisfeita que os donos da voz precisam voltar às origens e fazer do papo a concretização, na arena pública, daquilo que é a amizade na vida privada.
Só a conversa pode nos salvar.
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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