sábado, 31 de agosto de 2013

O futuro foi ontem - João Paulo

Livro de ensaios sobre a literatura brasileira contemporânea aponta impasses e caminhos possíveis para a prosa de ficção e para a crítica literária no país. Para novos autores, a tradição deve ser revista 


João Paulo

Publicação: 31/08/2013 04:00


Daniel Galera (Renato Parada/Divulgação  )
Daniel Galera

O contemporâneo é sempre um risco. É mais fácil falar do passado, das obras consagradas. O novo é um perigo. Sobretudo quando se trata de literatura, num momento em que os valores do passado estão sendo questionados e não se pode afirmar com clareza a composição de um novo cânone. A situação é ainda mais desafiadora quando a própria relação com o passado muda de figura. As promessas do modernismo não valem mais como única porta possível para o futuro. Nossa relação com o passado se tornou muito mais complexa. Nossas expectativas com o porvir muito mais diluídas.

Por essas e outras razões – como o impasse da crítica frente ao novo panorama –, o livro O futuro pelo retrovisor – Inquietudes da literatura brasileira contemporânea é tão importante. Ele marca uma aposta corajosa em relação à prosa de ficção que vem sendo feita no Brasil no século 21, a partir da constatação de um certo esgotamento das vertentes tradicionais e da invenção de novos modelos de relação com o passado. Em 17 ensaios são analisadas obras de autores contemporâneos, de Valêncio Xavier (1933-2008, o único que já morreu entre os selecionados) a Daniel Galera (nascido em 1979).
Michel Laub      Adriana Lunardi    Marcia Foletto/Divulgação    Luiz Ruffato    Adriana Vichi/Divulgação (Renato Parada/Divulgação)
Michel Laub Adriana Lunardi Marcia Foletto/Divulgação Luiz Ruffato Adriana Vichi/Divulgação
A maioria dos autores estudados nasceu nos anos 1960 e 1970, têm obras significativas, publicadas por grandes editoras, e repercussão nos meios críticos e em estudos acadêmicos. De certa forma compõem um novo cânone. Não faltam ao grupo escritores de gerações anteriores, como Chico Buarque, Rubens Figueiredo, Sérgio Sant’Anna e João Gilberto Noll, cujas obras se inscrevem no mesmo registro de transição. Os autores dos ensaios são todos professores universitários no Brasil e na Argentina, o que dá certa unidade aos textos críticos em termos de referências intelectuais, próprias dos departamentos de letras cada vez mais marcados pela influência da filosofia (que parece substituir o antes hegemônico referencial psicanalítico).

Os organizadores, Stefania Chiarelli, Giovannna Dealtry e Paloma Vidal, dividem os artigos em cinco grupos que, de certa maneira, propõem núcleos de interesse, cada um deles portador de uma proposta literária para enfrentar a questão central do livro: como relacionar a nova literatura com as referências que vêm do passado? Em outras palavras, de que maneira os novos autores – e os nem tão novos assim – inscrevem seu trabalho na história literária brasileira, num tempo que se caracteriza mais pela ruptura do que pela continuidade? Que elementos permitem pensar um caminho comum aos projetos de nossos escritores?
Adriana Lunardi     (Marcia Foletto/Divulgação)
Adriana Lunardi


A primeira seção se chama “Experiência, transmissão, alteridade” e reúne quatro ensaios. No primeiro, Stefania Chiarelli analisa a obra de Michel Laub (Diário da queda, quinto romance do autor) destacando a proximidade com a ficção de Samuel Rawet, no que toca à relação com as raízes judaicas de ambos. Mais que uma referência, o passado se constitui como uma questão, uma experiência crítica. Se a literatura de Laub chama atenção pela experiência, a de Bernardo Carvalho se caracteriza pela alteridade, como analisa Claudete Daflon ao estudar Nove noites. Num misto de romance e narrativa etnográfica, o autor colocaria em xeque a possibilidade de verdade nos dois universos, da arte e da ciência. O terceiro termo que faz parte o título da seção, transmissão, é o aspecto destacado na trilogia de romances de Carola Saavedra sobre a separação, em estudo de Diana Klinger, e em Leite derramado, de Chico Buarque, a partir de leitura de Alexandra Faria. Nos dois casos, a questão que se coloca diz respeito às possibilidades narrativas ou, mais ainda, às dificuldades de narrar, o que leva à exploração de elementos que evidenciam a falha, os cortes, os lapsos.
Luiz Ruffato     (Adriana Vichi/Divulgação)
Luiz Ruffato
A segunda parte de O futuro no retrovisor é composta de três textos que se debruçam sobre a obra de Ricardo Lísias, Adriana Lunardi e João Gilberto Noll, agrupados sob a chancela de “Literatura, vida, cena literária”. Os três autores, por diferentes registros, trazem para o texto a difícil separação entre arte e vida, em contos e romances que problematizam a presença do eu e do narrador. No caso de Ricardo Lísias, como aponta Luciene Azevedo, os fatos da vida pessoal do autor se mesclam com a ficção, com personagens que por vezes assumem o nome do próprio autor, criando uma assinatura literária que desliza entre dois mundos, com uma incômoda, mas astuta exposição da intimidade, que capta o leitor numa “brincadeira perversa”. Em Divórcio, mais recente romance do autor (posterior ao ensaio de Luciene Azevedo), a estratégia ainda se mostra operante. A escrita da intimidade, no entanto, é ainda mais intensa na obra de João Gilberto Noll que, como explica Gabriel Giorgi, radicaliza a interseção entre literatura e vida, até alcançar a dimensão da animalidade do corpo. O romancista dá uma resposta carnal à docilidade do poder que emana de um contexto social marcado pelo domínio da biopolítica. O bios é sede de revolta e não apenas endereço certo das manhas do poder.

Releituras

No terceiro conjunto de ensaios, “Releituras da tradição, reescrituras do moderno”, está em questão a maneira como a literatura contemporânea dá conta de propor novos modelos expressivos em função de seu desligamento com a tradição. Ou seja, para um novo modo de encarar o passado, uma nova forma estética. Sérgio Sá, ao analisar a obra de Rodrigo Lacerda, aproveita a dica do autor sobre a literatura de Eça de Queirós para propor certa ética da generosidade, que inunda a literatura de uma promessa de felicidade, de história bem contada, de encontro e comunicação, mas sem perder a ironia que daria o quê de contemporaneidade. Nos demais ensaios que integram a seção, Graça Ramos e Leila Lehnen destacam o diálogo com a literatura de formação (bildunsgroman) em João Almino e Daniel Galera, integrados contudo aos temas e elementos estilísticos do século 21 (daí o aspecto de reescritura da tradição). Na análise do romance Eles eram muitos cavalos, de Luiz Ruffato, Cátia Valério chama atenção para a visualidade e os recursos cinematográficos do romance-mosaico do autor, além de identificar a releitura crítica de estratégias utilizadas por autores como Graciliano Ramos, Autran Dourado, Oswald de Andrade e Osman Lins.
Chico Buarque     (IMS/Divulgação)
Chico Buarque


A seção seguinte, “Profanação, citação, encenação” começa com o ensaio de Giovanna Dealtry sobre a obra de Sérgio Sant’Anna. A autora arrisca uma homologia entre os textos ficcionais do escritor e as transformações que se observaram nas artes plásticas ao longo do século 20. Assim como as artes visuais deixaram de lado os suportes tradicionais e se reinventaram, a literatura de Sant’Anna foi além dos códigos convencionais, desafiando nosso renitente realismo. Mais que uma mudança de técnica, trata-se de uma aposta em novo modelo de conhecimento, que passa pelos sentidos, pela defesa da performance, pelo jogo entre as possibilidades da representação. Além de Sérgio Sant’Anna, a quarta seção reúne ensaio de Pascoal Farinaccio sobre o procedimento de citação em Lourenço Mutarelli (a citação como fermento para a criatividade pessoal em O cheiro do ralo); e estudo de Jorge Wolf acerca da estratégia de profanação na obra de Valêncio Xavier (que, mesmo profanado pelos proprietários das convenções literárias, foi capaz de profanar a arte, a cidade, o narrador e até a morte).

“Redefinições do cânone, dobras do nacional” é o título da última parte de O futuro pelo retrovisor. Como o nome indica, trata-se de problematizar o lugar da crítica no atual contexto da literatura brasileira. Se a prosa de ficção mudou para atender às provocações de uma nova relação entre a arte e seu tempo, a forma de se acercar das produções literárias também indica uma chacoalhada no território da crítica. Se o estatuto do narrador é um problema, o lugar crítico talvez seja uma questão ainda mais difícil de ser respondida. No primeiro ensaio, Paulo Roberto Tonani do Patrocínio parte dos trabalhos de Nelson Werneck Sodré e Flora Sussekind sobre o naturalismo brasileiro (chegando aos neonaturalistas) para se aproximar de Passageiro do fim do dia, de Rubens Figueiredo. Para o ensaísta, o romance propicia um diálogo com o naturalismo cientificista do século 19, mas a partir de bases postas pelo presente. Completam a seção textos de Susana Scramin e Paloma Vidal sobre obras de Milton Hatoum e Adriana Lisboa, em que são questionados os parâmetros convencionais da crítica, inclusive os gêneros literários e a busca de uma identidade nacional.

Em seu conjunto e na seleção dos autores estudados, O futuro no retrovisor se insere com coragem no terreno de disputas que hoje movem a literatura brasileira, presa ao conforto do mercado e das igrejinhas, por um lado, e nas aporias por vezes arriscadas do experimentalismo puro, por outro. Se no terreno da criação o cenário é instigante e se abre a várias perspectivas éticas e estéticas, no campo da crítica, seja ela universitária ou ensaística, o desafio é igualmente irrecusável. Foi-se, de vez, o tempo da delicadeza, e nem mesmo o passado é certeza de nada.

O FUTURO PELO RETROVISOR – INQUIETUDES DA LITERATURA BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA. Organizado por Stefania Chiarelli, Giovannna Dealtry e Paloma  Vidal
. Editora Rocco, 328 páginas

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