Kung fu e poesia
Um gênio do cinema conta, em imagens perfeitas, a vida do mestre de Bruce Lee
A gota de sangue se dilui na tempestade, um pano é torcido, um botão corre por uma mesa, sapatilhas deslizam pelo chão.
Mestres do kung fu se enfrentam sob chuva constante, ou dentro de um labiríntico pavilhão dourado. As lutas não são feitas só de imagens, mas também de sons. Os movimentos repentinos de braços e pés soam como se espadas cortassem o ar: shhhhh!
Em tese, o filme se passa na China, mas sua verdadeira localização é uma dimensão extra, aquela dos sonhos: estamos no universo do diretor chinês Wong Kar-Wai, gênio cool do cinema contemporâneo.
Seu novo longa se chama "The Grandmaster". Estreou há poucos dias nos EUA. Na China, já saiu em DVD, encontrável nas principais lojas on-line. Veja o quanto antes, seja como for.
O Wong que conhecemos é o cineasta da claustrofobia, da vida concentrada (ou esmagada) em espaços diminutos, da trilha sonora incorporada à narrativa, dos movimentos impossíveis de câmera entre corpos praticamente colados. Assim o vimos, por exemplo, em sua obra-prima, "Amor à Flor da Pele" (2000), e na sequência desta, "2046" (de 2004).
Tudo isso está presente em "The Grandmaster". As lutas são filmadas quase sempre em planos fechados, mesmo quando envolvem várias pessoas. Detalhes de mãos, de pés, golpes precisos e poéticos --mais coreografia que combate.
Mas o filme traz uma novidade. Mostra o diretor, também, com um domínio total dos espaços abertos. Uma cena épica, entre tantas, se destaca. Um funeral se desenrola sob uma nevasca, em uma planície branca sem fim (lago congelado? praia? --o reflexo intenso da neve não permite dizer).
De repente, o grupo que conduz o finado, oferecendo-o em cânticos aos deuses e aos espíritos, se depara com um obstáculo. Um bando de praticantes sanguinários de kung fu quer tomar conta do velório, porque se julga o verdadeiro dono do legado do morto.
O som do vento, a tempestade impiedosa, decisões a serem tomadas em uma fração de segundo, a força bruta versus a emoção. Uma composição cinematográfica para ser estudada por muitos anos.
Só um alerta: em "The Gradmaster", como é habitual em Wong Kar-Wai, existe apenas um fio de enredo, que se desenvolve de modo nem sempre muito claro.
O filme mostra a vida de Ip Man, um dos maiores expoentes da história do kung fu. No Ocidente, Ip é conhecido por ter sido o instrutor de Bruce Lee (1940-1973), até hoje o nome mais admirado dos filmes de artes marciais. Mas, na China, ele é mais que isso. Uma figura mítica, que, exilada em Hong Kong (na época, colônia inglesa), divulgou ao mundo o wing chun, um estilo antes elitizado do kung fu.
A história se passa entre as décadas de 1930 e 1950. Em uma China dividida entre norte e sul, invadida pelo Japão, o lutador sulista Ip Man é escolhido um dos dois sucessores de um velho mestre do kung fu (o outro é um discípulo baseado no norte do país).
Mas esse mestre tem uma filha, uma lutadora genial que não pode ser oficialmente sua herdeira, porque as artes marciais não aceitariam uma mulher em um posto tão alto.
O sucessor nortista se alia aos invasores japoneses e prospera. Ip Man se nega a colaborar e perde tudo.
Ip é interpretado pelo ator preferido de Wong, Tony Leung. Para o papel da filha do velho mestre, chamada Gong Er, o diretor escolheu a beleza avassaladora de Zhang Ziyi, impossivelmente ainda mais linda do que em "2046".
A partir da relação tensa e ambígua entre Ip Man (o sucessor por estilo) e Gong Er (a herdeira de sangue), Wong Kar-Wai desenvolve seu temas prediletos: a passagem do tempo, a impossibilidade do amor, pessoas certas cujos destinos se cruzam na hora errada.
"Que tédio seria a vida sem arrependimentos" diz Gong Er a Ip Man, em uma das últimas cenas, para mim a mais emocionante, um encontro desolado em uma casa de chá de Hong Kong.
Mais uma vez, Wong Kar-Wai não aponta caminhos. Seus roteiros são mapas em aberto. Suas cenas, diamantes perfeitos, cada face do cristal sujeita a uma interpretação diferente. Cinema lapidado quadro a quadro, um diretor no exercício de sua plenitude artística.
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