sábado, 28 de setembro de 2013

Domitila, uma mulher forte - Ana Clara Brant‏

O arquiteto Paulo Rezzutti se apaixonou pela história da marquesa de Santos, descobriu 94 cartas trocadas entre Pedro I e a amante e está lançando biografia cheia de revelações amorosas e políticas


Ana Clara Brant

Estado de Minas: 28/09/2013 


Paulo Rezzutti pesquisou documentos históricos e mergulhou na representação da marquesa de Santos no imaginário do brasileiro de ontem e de hoje (Leandro Couri/EM/D.A Press)
Paulo Rezzutti pesquisou documentos históricos e mergulhou na representação da marquesa de Santos no imaginário do brasileiro de ontem e de hoje


Muito se conhece sobre a vida de Domitila de Castro Canto e Melo, a marquesa de Santos, durante os sete anos em que ela foi amante de dom Pedro I. Mas e como ela viveu nos 63 anos restantes, nos períodos antes e pós-relacionamento com o imperador? Foi isso que instigou o arquiteto e escritor Paulo Rezzutti a escrever Domitila – A verdadeira história da marquesa de Santos, lançado pela Geração Editorial. Rezzutti, que estreou na literatura em 2011 com Titília e Demonão: cartas inéditas de d. Pedro I à marquesa de Santos, quando descobriu 94 desses documentos, conta que mergulhou tão a fundo no universo dos “amantes de São Cristóvão”, como o casal ficou conhecido, que chegou até a sonhar com eles. O livro, que é fruto de quatro anos de pesquisa, traz outro lado da marquesa e mostra como sua imagem em São Paulo era completamente diferente da que tinha na corte (Rio de Janeiro). Domitila seria a marquesa dos Santos ou dos demônios? “Trótski fala na introdução de sua História da Revolução Russa que a moral ele deixa para os moralistas, ele quer saber é da história. Também não vou interpretar o que é amoral ou imoral. Cada um tire suas conclusões”, propõe Rezzutti.

Como começou seu interesse pela marquesa de Santos?

Sou arquiteto e estava fazendo um trabalho no solar da marquesa. Foi quando descobri que ela estava enterrada em São Paulo e fiquei me perguntando: “Todo mundo fala desse período de sete anos em que a Domitila foi amante do dom Pedro. Mas e o resto da vida dela? O que aconteceu?”. Não tem nada sobre isso. E claro que também não interessa, porque o que sempre importou foi apenas sua imagem como amante, para denegrir o sistema monarquista e a própria figura de Domitila.

Que momentos e aspectos da vida de Domitila são apresentados em seu livro?

O livro percorre a trajetória dela desde o nascimento, mas também depois de sua morte. O que aconteceu com os filhos, a briga durante 20 anos pela herança. E depois faço uma construção da memória dela na cultura brasileira. Como a imagem da Domitila aparece nos livros de história do Brasil, quando apareceram, sobre o que falam. Abordo também a imagem dela nos filmes e minisséries. Como a imagem dela é trabalhada ao longo dos anos até os dias de hoje. Mas o interessante é que a Domitila sempre passou essa impressão de uma mulher muito forte. Tem um caso curioso. Na ocasião do sesquicentenário da Independência, em 1972, a Estrela lançou três versões da boneca Susy: dom Pedro, Leopoldina e a Dama da Corte, que logo foi apelidada de marquesa de Santos. O dom Pedro e a marquesa esgotaram e a Leopoldina encalhou.

Você entrou em contato com os descendentes da marquesa?

Sim. Já estão na quinta geração, pelo que me parece. Consegui encontrar os descendentes do Tobias de Aguiar, o segundo marido. Do primeiro, o Felício Pinto Coelho de Mendonça, que inclusive é mineiro, nunca achei. A Domitila chegou a morar em Minas, em Vila Rica, logo depois de se casar, porque o Felício era de lá. Viveu três anos na cidade e teve três filhos com ele, sendo que dois são mineiros.

Mas nessa época ela já era amante do imperador?

Não. Quando ela conhece o dom Pedro já tinha até sido esfaqueada pelo Felício, porque estavam brigando feio para se separar. Ele fazia parte dos Dragões de Vila Rica e vai para São Paulo porque os dragões se aquartelam lá para poderem ir para o Sul, para a campanha da Cisplatina. O pai do Felício era dono de quase toda a Barão de Cocais (MG). A marquesa vem de uma família de militares, classe média, e acaba se casando muito bem.

E por que Domitila e o primeiro marido se desentendem?

A mulher paulista era muito diferente de boa parte das mulheres do Brasil. São Paulo era um lugar em que a mulher ficava e o homem partia, para a guerra, para as bandeiras. Então, ela tem que se virar sozinha e fica responsável por cuidar dos filhos, da casa. O homem está sempre ausente. Por causa disso, acaba sendo uma mulher extremamente forte. Tanto que, quando ocorre a Guerra dos Emboabas, são as mulheres que incitam os paulistas a brigarem por causa das minas. Tem até um ditado da época que diz: “Quem casa com paulista nunca mais levanta a crista”. E foi assim com a crista do Felício (risos). Aparentemente, Domitila não se deixava dominar pelo marido. Ele até tenta, mas não consegue. Ela dá um basta e os pais a chamam para voltar para São Paulo.
É o primeiro escândalo da vida da Domitila?

Sim. Imagine se separar naquela época. Tanto que, quando ela vira amante de dom Pedro, a moral dela já está em baixa (risos). Quando Domitila volta para São Paulo, o Felício vai atrás. A mãe dele morre e ele herda terras. Só que a marquesa quer vender e eles começam a brigar. O Felício chega a falsificar a assinatura dela, a esfaqueia e tenta matá-la. Mas ela se recupera. O Felício é preso e, para se defender, começa a inventar que a esposa era infiel, o que não era verdade. Ele não consegue provar nada e, como sua família era bem relacionada, conseguem libertá-lo e os dois acabam mesmo se separando.

E é nesse momento que surge dom Pedro I?

Mais ou menos por volta dessa época, agosto de 1822, dom Pedro está a caminho de São Paulo e quem o guia do Rio de Janeiro para lá é Francisco, irmão de Domitila, uma grande coincidência. E, provavelmente, ela conhece o imperador por intermédio desse irmão. O relacionamento começa em 29 de agosto deste mesmo ano.

E a marquesa era uma mulher bonita para os padrões da época?

Não sei. A questão da Domitila é que ela chamava a atenção porque era uma mulher forte. Assim como a Chica da Silva, ela era ótima parideira, teve 14 filhos, veio do povo, acaba se relacionando com alguém importante no poder. Só que com a Chica a coisa é mais local e no caso da Domitila é uma coisa nacional. O burburinho fica no país todo.

E como foi o relacionamento com o imperador?

Eles se conhecem em agosto de 1822 e, em 1823, Domitila já está na corte, no Rio. No começo, a coisa é velada. Eles começam a escancarar em 1824. E em 1826 é algo absurdo e ela vira primeira dama da imperatriz. A Leopoldina tem que aguentar a amante do marido na corte. Ela vira viscondessa de Santos e, posteriormente, marquesa de Santos, mas não tem nenhum vínculo com a cidade. Isso faz parte de uma briga de dom Pedro com o José Bonifácio de Andrada, que era de Santos. A família dele não suporta a Domitila e o imperador a nomeia de propósito. Tem uma carta do Bonifácio em que ele desabafa: “Você já imaginou uma michela (prostituta) como viscondessa da pátria dos Andradas?”.

E ela era fiel a ele?

Dom Pedro I era o cara mais poderoso do Brasil, então imagine se ela iria traí-lo. Ele teve casos com outras mulheres ao mesmo tempo em que estava com a Domitila, inclusive, com a irmã dela. Ele não tinha esse apelido de Demonão por acaso.

E por que ele decidiu romper com ela?

Eles ficaram juntos sete anos e quando a Leopoldina morre, em 1826, dom Pedro começa a procurar outra esposa. Aí ele toma consciência da bobagem que fez. Todo mundo tinha caso, mas a coisa não é tão explícita. O problema é que ele tem um caso escancarado para toda a sociedade. E isso acaba transformando a marquesa numa fonte de poder também. O Charles Stuart, embaixador britânico que veio negociar o Tratado de Paz entre Portugal e o Brasil, visita primeiro a marquesa de Santos e depois Leopoldina. Olha a força disso! Dom Pedro a tornou pública, então a Domitila ganhou poder. Por isso, quando ele começa a procurar uma nova esposa na Europa, ele já estava com o filme queimado, porque todo mundo sabia do caso. Dom Pedro chegou a ter sete negativas. Até que ele consegue Amélia, que era de uma nobreza um pouquinho inferior, não era de uma casa reinante.

Foi um rompimento tranquilo?

Muito pelo contrário. Tem cartas hilárias do Chalaça para o marquês de Barbacena, que foi o encarregado de trazer a nova consorte ao Brasil. O Chalaça está no Rio e escreve dizendo que vai tentar atrasar o navio que leva o tratado de casamento, para ver se nesse meio-tempo a marquesa deixa a corte. Porque ela não queria sair de lá de jeito nenhum. Ela era uma matuta paulista. São Paulo tinha 25 mil pessoas em toda a província, enquanto que o Rio já tinha iluminação, modistas franceses, perfumistas, as melhores bebidas, os melhores confeiteiros, teatro que recebia as companhias europeias. Coisas que não existiam em São Paulo. Por isso, seria um suplício voltar. E não era só ela. Tinha mãe, irmãos, toda a família dela estava desfrutando do bem-bom. Dom Pedro arrumou emprego para todo mundo. Aí, ela quer ficar no Rio de qualquer jeito, mas o imperador a proíbe. Ele chega, inclusive, a pensar em exilá-la na Europa. Então faz uma proposta milionária para Domitila e ela volta a contragosto.

E eles tiveram algum contato depois do término do relacionamento?

Não. Acabou completamente.


"Domitila era plural"



Paulo Rezzutti revela uma marquesa rica e poderosa, mas caridosa com os pobres (Leandro Couri/EM/D.A Press)

Paulo Rezzutti revela uma marquesa rica e poderosa, mas caridosa com os pobres
Dando continuidade à entrevista, o escritor Paulo Rezzutti analisa o papel político da marquesa de Santos e a forma como sua imagem variou, entre a crítica e repúdio da corte e a influência em São Paulo. O pesquisador fala de seu novo projeto: explorar o lado humano e familiar do inflamado e galanteador dom Pedro I.

Qual a importância política da marquesa?
Quando o imperador escancara o relacionamento, ela passa a ter uma importância. Porque tinha esta coisa: se com a oficial não resolve, vamos tentar com a outra. O caso do Charles Stuart é um desses exemplos. Ela interferiu em um ponto do tratado que ele trouxe, mas foi uma pequena modificação. E pedia nomeação, cargo. Mas ela tinha noção das coisas. Não pedia tudo. O imperador mesmo fala que ele faz até onde pode. Ele não vai colocar alguém da confiança da Domitila acima de quem ele quer nomear. Dom Pedro não era um pau-mandado.

E a importância dela para a nossa história?
É a questão do mito, assim como Chica da Silva. A partir do momento em que essa história se tornou pública, as pessoas contrárias a dom Pedro pegam o caso amoroso e fazem um auê em cima, para provar que ele era uma pessoa ruim, amoral, que não servia para governar. Quando ele abdica em 1831 e vai embora, saem várias publicações na imprensa tentando atingir e desmontar a imagem do imperador, utilizando o caso amoroso. Porque tinham medo que depois que dom Pedro resolvesse as questões na Europa, ele voltasse ao Brasil para tomar a coroa ou virasse regente do filho, Pedro II. Mas não há dúvidas de que Domitila foi, sim, uma mulher muito influente.

O seu livro mostra que a imagem dela no Rio era uma e em São Paulo outra. Por quê?
No Rio ela era atacada por causa desse relacionamento. A imprensa e os opositores do imperador conseguem explorar os sete anos de caso e acabam com ela. Mas em São Paulo, onde ela passou 63 anos de sua vida, é diferente. Ninguém conta no Rio que a Domitila foi a responsável pelo restauro da Igreja de São Cristóvão. Ninguém fala que ela doou dinheiro para a campanha da Cisplatina. Só falam que ela foi amante de dom Pedro. Em São Paulo, ela doa dinheiro para a construção da primeira sede da Santa Casa de Misericórdia; compra casa e a doa para servir como dispensário e enfermaria para pobres; doa dinheiro para a construção da capela do primeiro cemitério municipal da capital paulista, que é o da Consolação, e promove até a decoração interna do espaço.

E essa história de que ela virou santa?
A Domitila está enterrada no Cemitério da Consolação. Quando morre, deixa dinheiro para os pobres e começa a ganhar fama de santa, de generosa. Hoje, ela é tida como uma santa popular em São Paulo. As “marquesinhas” modernas vão muito lá (risos). Tem a lenda de que a mulher que roda o túmulo dela consegue se casar. O local tem vários papéis com graças alcançadas. Gente que arrumou emprego, marido. É bem engraçado ver que a amante de dom Pedro se tornou uma santa.

Mesmo tendo sido uma amante pública do imperador, ela conseguiu se casar novamente. Ela não ficou com o filme queimado?
O dinheiro apaga tudo. Domitila ficou muito bem financeiramente e, nessa época, o Felício, primeiro marido, morre e ela herda vários bens. Tanto que quando a própria marquesa morre – fiz um levantamento – sua fortuna equivaleria a algo em torno de R$ 120 milhões. Era a mulher mais rica de São Paulo quando voltou e uma das mais ricas do Brasil. Tinha terras, escravos, fazendas. Não foi difícil encontrar outro marido. O Tobias era mais velho, celibatário. Ninguém achava que ele ia se casar. Parece que ela jogou asa para cima dele. E também tem uma questão política. Domitila era muito bem relacionada em São Paulo, amiga de todos os políticos. Seu envolvimento com o Tobias é uma forma de sobrevivência também.

Você mudou a imagem que tinha dela?
Não. Pelo contrário. Eu me confundi mais ainda (risos). É tanta imagem que agora tenho dela, tanta coisa que descobri. Domitila é plural. Não é só porque ela foi amante de dom Pedro que só tenha aspectos negativos. Assim como qualquer pessoa, ela tem o lado positivo também.

Sua pesquisa sobre a Domitila pode render mais alguma coisa?

Não. Agora estou mais focado em dom Pedro. Nessa questão mais humana dele. Na sua relação com os filhos. Para a época, é muito curioso, porque você não tinha relacionamento com seu filho. Era babá e tutor que criavam. Era uma relação afastada. E com ele não. O imperador virava a noite na cama ao lado dos filhos doentes. As cartas que ele envia aos filhos que ficaram no Brasil, ainda crianças, inclusive dom Pedro II, têm até marcas de lágrimas. É este aspecto que quero explorar.


Domitila – A verdadeira história da marquesa de Santos

• De Paulo Pezzutti
• Geração Editora
• 352 páginas, R$ 39,90

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