Eu havia entrado
primeiro no avião – privilégios da idade – e, sentada junto ao corredor,
livro já pronto no colo, esperava a chegada da pessoa que sentaria ao
meu lado, no assento do meio. A moça chegou, abriu o compartimento ao
alto, acomodou sua mochila, fechou, sentou-se. O comissário de bordo
veio em seguida. Abriu o compartimento, e retirando a mochila dela,
justificou: “Neste, estamos levando um órgão para transplante. Pela lei,
tem que viajar sozinho”. Colocou a mochila em outro compartimento, e se
foi.
Se foi, e eu não era mais a mesma de quando ele havia chegado. Seu anúncio havia aberto em mim a reverência. Era como se acima da minha cabeça, naquele espaço anódino que não nos merece a atenção, naquele quase depósito, viajasse agora um recém-nascido. A delicadeza primeira da vida viajava ali, oculta em isopor, desconhecida dos demais. Uma luz fechada em sua caixa térmica exigia isolamento para manter-se acesa.
O livro ficou sem abrir no meu colo.
Fosse eu o comandante daquele avião, teria precedido a costumeira saudação aos passageiros, com a informação da preciosa presença: “Senhores passageiros, com prazer informo que nossa aeronave leva hoje a bordo uma vida a mais, vida que alguém, na ponta de uma longa fila, espera há tempos. A aviação ganha, com ela, um sentido maior”.
Porém o comandante nada disse além da duração que teria o voo, da altura em que transitaria a aeronave – o avião, para o comandante, é sempre aeronave, palavra mais grandiosa ligada aos insondáveis oceanos aéreos –, das condições meteorológicas e da temperatura que nos aguardava no local de chegada. Da carga preciosa, nem uma palavra. Pensei que a discrição pode fazer parte das normas, pensei que esse tipo de carga pode ser mais comum do que se pensa, quase uma rotina para a tripulação. Pensei, sem que isso diminuísse minha emoção.
Estranhamente, a morte do doador daquele órgão não entrou nas minhas cogitações. Era como se ali estivesse um Lázaro, saído inteiro da tumba em atendimento ao chamado do Senhor, e não apenas uma parte dele, a única à qual seria permitido continuar em vida. A vida é tão intensa que uma parte pode ocupar o espaço do todo.
“Que órgão seria aquele?”, me perguntei. Amigos tive alguns que se beneficiaram por doações, outros que teriam gostado mas haviam passado da idade, e a amiga que bem precisaria de um fígado novo, mas mora em uma ilha pequena onde as doações são improváveis. Quem doa não sabe a quem, não sabe em que corpo uma parte de si irá lançar novas raízes, em que geografia ou família. Lázaro saiu para voltar à própria casa, mas a casa de quem doa está perdida para sempre, a volta terá que ser tão escura quanto a partida.
Um órgão anônimo viajava acima da minha cabeça e os meus no meu corpo palpitavam. Já não servem para doação, embora ainda me prestem fiéis serviços. Trabalharam muito, trabalharam a contento e lhes sou grata. Uma falha ou outra, devidamente contornadas, pontuaram nossa convivência, mas é provável que eles tenham mais queixas de mim do que eu deles. Fui, em certas ocasiões, usuária excessivamente exigente. Sobretudo do coração. Agora, em bom funcionamento, já estamos bem adiantados na viagem. Só não sabemos quando o comandante informará a hora da chegada.
Se foi, e eu não era mais a mesma de quando ele havia chegado. Seu anúncio havia aberto em mim a reverência. Era como se acima da minha cabeça, naquele espaço anódino que não nos merece a atenção, naquele quase depósito, viajasse agora um recém-nascido. A delicadeza primeira da vida viajava ali, oculta em isopor, desconhecida dos demais. Uma luz fechada em sua caixa térmica exigia isolamento para manter-se acesa.
O livro ficou sem abrir no meu colo.
Fosse eu o comandante daquele avião, teria precedido a costumeira saudação aos passageiros, com a informação da preciosa presença: “Senhores passageiros, com prazer informo que nossa aeronave leva hoje a bordo uma vida a mais, vida que alguém, na ponta de uma longa fila, espera há tempos. A aviação ganha, com ela, um sentido maior”.
Porém o comandante nada disse além da duração que teria o voo, da altura em que transitaria a aeronave – o avião, para o comandante, é sempre aeronave, palavra mais grandiosa ligada aos insondáveis oceanos aéreos –, das condições meteorológicas e da temperatura que nos aguardava no local de chegada. Da carga preciosa, nem uma palavra. Pensei que a discrição pode fazer parte das normas, pensei que esse tipo de carga pode ser mais comum do que se pensa, quase uma rotina para a tripulação. Pensei, sem que isso diminuísse minha emoção.
Estranhamente, a morte do doador daquele órgão não entrou nas minhas cogitações. Era como se ali estivesse um Lázaro, saído inteiro da tumba em atendimento ao chamado do Senhor, e não apenas uma parte dele, a única à qual seria permitido continuar em vida. A vida é tão intensa que uma parte pode ocupar o espaço do todo.
“Que órgão seria aquele?”, me perguntei. Amigos tive alguns que se beneficiaram por doações, outros que teriam gostado mas haviam passado da idade, e a amiga que bem precisaria de um fígado novo, mas mora em uma ilha pequena onde as doações são improváveis. Quem doa não sabe a quem, não sabe em que corpo uma parte de si irá lançar novas raízes, em que geografia ou família. Lázaro saiu para voltar à própria casa, mas a casa de quem doa está perdida para sempre, a volta terá que ser tão escura quanto a partida.
Um órgão anônimo viajava acima da minha cabeça e os meus no meu corpo palpitavam. Já não servem para doação, embora ainda me prestem fiéis serviços. Trabalharam muito, trabalharam a contento e lhes sou grata. Uma falha ou outra, devidamente contornadas, pontuaram nossa convivência, mas é provável que eles tenham mais queixas de mim do que eu deles. Fui, em certas ocasiões, usuária excessivamente exigente. Sobretudo do coração. Agora, em bom funcionamento, já estamos bem adiantados na viagem. Só não sabemos quando o comandante informará a hora da chegada.
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