O Globo - 26/09/2013
A pesquisa recém-divulgada da Fundação Oswaldo Cruz sobre o perfil e
o número dos usuários de crack no país é um importante alerta e chega
em boa hora: o Senado está prestes a votar um projeto de lei que coloca
o Brasil na contramão da história do ponto de vista da política sobre
drogas, sacramentando a internação compulsória do dependente químico e
aumentando a pena mínima para o tráfico, que passa a ser mais alta do
que aquela para homicídio.
A pesquisa é um alerta, em primeiro lugar, porque revela números com
precisão jamais vista. A partir de um sofisticado método (NSUM) que
estimou o número de usuários, estejam eles onde estiverem, a partir de
visitas domiciliares com 25.000 entrevistados, chegou-se à cifra de
370.000 usuários de crack e outras formas similares de cocaína fumada
no país (www.fiocruz.br). Este número equivale a 0,8% da população das
capitais brasileiras, ou seja, menos da metade do indicado por outros
levantamentos exclusivamente domiciliares, com utilização de amostras
muito reduzidas. Ademais, os que defendem os resultados de pesquisas
anteriores ao rigoroso estudo da Fiocruz seguem afirmando que o Brasil
vive uma epidemia de crack, quando não temos séries históricas
confiáveis, utilizando metodologia efetiva para avaliação de populações
não domiciliadas, como faz o NSUM. A situação detectada, embora grave,
está muito distante do quadro de caos que se tentava difundir e que
serve de justificativa para estratégias equivocadas e ultrapassadas na
área das políticas sobre drogas.
Além da pesquisa domiciliar, a equipe da Fiocruz realizou também, em
todas as regiões do país, levantamento dos locais utilizados por
usuários de drogas como o crack e similares, superando em muito
análises anteriores que se limitavam a estudos com algumas dezenas de
pessoas, sem representatividade estatística.
Justamente a partir desse levantamento é que se tem a dimensão da tragédia
brasileira: longe de termos uma epidemia de crack, temos, como já se
disse, uma epidemia de abandono. 40% dos usuários de crack estão em
situação de rua, vivendo um quadro de extrema privação social. Uma
população sem alternativas ou perspectivas, para quem a droga é a única
fonte real de prazer, como lembra Cari Hart, professor da Universidade
de Columbia. Em resumo, estamos diante de um relevante problema de
saúde pública entre os "deserdados da terra" (como definiu Francisco
Inácio Bastos, coordenador do projeto e pesquisador sênior da Fiocruz) e
não entre pessoas encontráveis em seus domicílios, por meio de métodos
tradicionais.
A pesquisa é, também, um alerta para aqueles que acreditam em
internação compulsória e outros métodos medievais para tratamento dos
usuários problemáticos de drogas. Na pesquisa da Fiocruz, 80% dos
usuários, revelaram desejar tratamento, o que não quer dizer que as
pessoas desejem ser privadas de sua liberdade e internadas em
comunidades terapêuticas, em sua maior parte mantidas por grupos
religiosos que fazem da adesão aos rituais e à prática da "fé" a
estratégia de uma suposta "cura" Precisamos investir recursos públicos,
sobretudo, no atendimento e tratamento em meio livre.
Nunca é demais repetir: a grande maioria de usuários de drogas
lícitas e ilícitas não desenvolve dependência e jamais vai precisar de
tratamento porque faz uso recreacional. Apenas 9% dos que usam maconha,
17% dos que usam cocaína, e 15% dos que usam álcool se tornam
dependentes. Aliás, é bom lembrar que nos Estados Unidos, além dos 22
estados que já legalizaram o uso medicinal da maconha, há outros dois
que legalizaram o uso recreacional dessa substância: Colorado e
Washington. Quando o país que levou o mundo a uma fatídica e genoci-da
guerra às drogas começa a mudar de rumo, vale ficar atento.
Julita Lemgruber é socióloga e coordenadora do Cesec/Ucam
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