domingo, 27 de outubro de 2013

AFFONSO ROMANO DE SANT'ANNA » No caminho da floresta‏

Estado de Minas: 27/10/2013 






No avião para o Acre, ao meu lado, um rapaz moreno lia um livro de sonetos de Pablo Neruda. Mas havia também um grupo de franceses e francesas. Quando os vi sonolentos no aeroporto de Brasília, pensei: “De onde estão vindo e para onde vão esses gringos?”. Pareciam equipados para viagens estranhas, estavam apinhados de mochilas e com um ar de hippies de meia-idade.

Embarcamos para Rio Branco. No avião, o rapaz do livro com sonetos de Neruda dormia. Só ao chegar perto da capital do Acre pegou o livro do poeta. E lia. Enquanto isso os franceses estavam agitados como colegiais em férias.

Desci em Rio Branco, onde me esperava o pintor Fernando França, que nasceu aqui, mas vive no Ceará. Os cearenses vieram para cá no final do século 19 fugindo da seca e participaram do ciclo da borracha. Fernando veio assistir a minha conferência e me mostrar a boneca do livro que fará a partir dos poemas de  O homem e sua sombra.

Enquanto almoçávamos, falei do bando de franceses que vi no avião. Falou-me então que nessa época ocorre o popular festival dos índios yawanawa, em que se bebe ayahuasca. Vocês se lembram: nos anos 1970 e 80 do século passado, aquela bebida era tomada por artistas e hippies brasileiros em busca da revelação de suas fraquezas e fortalezas.

Hospedam-me no hotel que tem o nome de Galvez, aquela figura que virou romance e novela. Revejo a história do tipo: Luiz Galvez Rodrigues de Arias (1864 – 1935), que proclamou a Republica do Acre entre 1899 e 1900 e misturou interesses pessoais, sexuais e nacionais. Figura rocambolesca.

O Brasil com essa mania de ser grande não tem bem consciência de si mesmo. Os franceses estão indo ao encontro dos yawanawas. E levei 10 horas para chegar aqui. O Brasil é longe do Brasil. E aquele desconhecido, talvez apaixonado, lê sonetos de Neruda no avião.

O que sabemos desta parte do país conquistada à Bolívia? O que sabemos dos yawanawas e dos kaxinawa? Depois da conferência na esplêndida e espaçosa biblioteca pública, a jornalista Andréa Zílio (que fez reportagens sobre a nova história do povo yawanawas) me conta coisas dessa gente. Essa gente que os franceses foram ver. Esses gringos terão que enfrentar ainda oito horas de viagem de navio. Enfim, chegarão lá na mata, onde participarão dos festivais sagrados daquela tribo.

Aqui também sou meio gringo. Enquanto autografava meus livros no imponente shopping da cidade, na Livraria Nobel, achava estranho que leitores comprassem Barroco do quadrado à elipse. Dizia a eles: o barroco parece tão distante de vocês, parece coisa de Minas e da Bahia, outro mundo. O mundo aqui é a floresta, as seringueiras e Xapuri. Chico Mendes é um símbolo.

E no restaurante onde estamos, Gregório Filho, que criou aqui tantas Casas da Leitura na floresta, me diz apontando umas árvores: “Plantei aquelas seringueiras aqui há quase 30 anos”. Levanta-se e vai abraçar uma delas, como se abraçasse uma amiga visceral. Fernando França registrou e eu digo: “Bota isto no Facebook”.

O livro e a floresta. Alguns índios dessa região foram até fazer cursos nos Estados Unidos. Algumas tribos têm internet. Querem salvar suas tradições registrando-as nas nuvens. A civilização avança sobre a floresta. Outro dia acharam uma tribo que se recusa a ser assimilada. Não deixam os indigenistas atravessarem o rio.

Nós os olhamos como índios. Em compensação, os americanos e europeus nos olham, a nós, que escrevemos livros, como índios. Vi isso há dias na Feira de Frankfurt, na Alemanha. Lembram que andaram dizendo, profeticamente, nos anos 1960, que o mundo seria uma aldeia global?

Os franceses que vi no avião devem a estas horas estar tomando da bebida sagrada dos yawanawas. Terão alucinações assustadoras, libertando seus anjos e demônios.

O seminário sobre a América no imaginário europeu não termina nunca.


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