Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 27/10/2013
Hoje trabalhando como manicure, Zuza conta sem rodeios as dificuldades por que passou e sua luta para superar as adversidades sem perder o prazer de viver |
No primeiro capítulo de Divã de papel, como porta de entrada para o que vem em seguida, Maria de Jesus da Silva, a Zuza, dá voz à irmã, Veva, que, numa sinceridade desconcertante vai narrando, passo a passo e sem cair na lamúria, como se deu a traumática vinda da família para Belo Horizonte. No fim dos anos 1950, depois de amargar a miséria em Guanhães, no Vale do Rio Doce, a mãe, abandonada pelo marido, partiu de jardineira para tentar a vida na capital com seus oito filhos.
O espaço aberto para a irmã, que era a mais velha dos filhos de um casal de lavradores, é explicado pelo fato de que, à época da mudança, Zuza tinha apenas 11 meses. Daquela fase, a mulher de olhar determinado diz não se lembrar de nada. “Nunca mais voltei a Guanhães, nem tenho vontade. Foi sofrimento demais para a minha família”, diz.
Toda a história de vida de Zuza, com tantos e inacreditáveis desdobramentos, nos quais vai sendo mostrada uma trajetória de pobreza que o Brasil, desde sempre, faz questão de ignorar ou jogar para debaixo do tapete, está contada em Divã de papel, que a escritora lança terça-feira em Belo Horizonte. Sem forçar comparações, é uma saga parecida com a de dois outros brasileiros vindos da pobreza e que conseguiram documentar suas vidas em palavras: a escritora Carolina Maria de Jesus, autora de Quarto de despejo, e o contador de histórias Roberto Carlos Ramos.
A história de Maria de Jesus, ex-menina de rua que aos 4 anos foi jogada num orfanato, para sair aos 14 e voltar para a dura realidade das ruas e favelas de Belo Horizonte, começou a ser registrada quando, no seu trabalho como manicure, ficou conhecendo Vera Lúcia Felício Pereira. Impressionada com os relatos de Zuza, enquanto esta ia fazendo suas unhas, a professora de literatura da PUC Minas conta que um dia não resistiu e entregou a ela alguns cadernos e disse: “Exijo que escreva suas histórias”.
Qual não foi a sua surpresa quando, alguns meses depois, recebeu os cadernos recheados de textos escritos à mão e que, levados por ela para a universidade, logo chamaram a atenção de professores e alunos, a ponto de a professora Ivete Walty ter feito dos relatos de Zuza o tema do seu pós-doutorado. Apresentado na Universidade de Ottawa, no Canadá, com o título de Testemunha estomacal, fome e escrita, o texto vem em anexo no livro.
“As memórias de Zuza não são apenas suas confissões e reflexões pessoais, são o testemunho de alguém que resistiu à fome, com outra fome; não só a de ganhar dinheiro, como ela mesma diz, mas a fome de viver, ou mais do que isso, a de viver com o outro e para o outro”, escreveu. O livro foi também motivo de estudo feito pela professora Vera Felício Pereira e de dissertação de mestrado de Gislene Ferreira da Silva. O jornalista Rogério Zola Santiago auxiliou a escritora na montagem final do livro.
Cabeça de porco Reconhecimento acadêmico à parte, quem se lançar à inesquecível e triste aventura de ler o livro de Zuza – que se hoje não tem muita coisa além de casa própria, em Venda Nova, e uma disposição incrível para o trabalho – vai se encantar com a história de uma mulher rica em relação à realidade vivida na infância e adolescência. Algumas passagens são surpreendentes. Numa das mais terríveis de Divã de papel, que daria uma ótima minissérie ou documentário para TV, a autora volta ao Mercado Central de Belo Horizonte, no qual às vezes a família ia revirar lixo ou tentar encontrar algo para matar a fome.
É o seguinte o relato de Zuza: “Eu estava procurando algo para colocar na minha latinha, quando vi ou ouvi algo que me chamou a atenção. Sabe, estava acontecendo uma disputa entre minha mãe e outros pedintes. Nós todos corremos para ver de perto, estavam disputando uma cabeça de porco. Minha mãe puxava pra cá e a dona puxava pra lá, a disputa estava feia, minha mãe sozinha. Mas surgimos todos nós ao mesmo tempo e fomos ajudar a nossa mãe, a nossa turma era mais esperta e ganhamos a disputa. Ela guardou a cabeça do porco na sacola e saímos dali urgente, cada um por um caminho”.
Igualmente comoventes são as páginas que Veva, na abertura do livro, e Zuza, em outros capítulos, dedicam a uma de suas irmãs, Conceição. Alegre, despachada e líder da turma, também no primeiro momento internada no orfanato, no qual nunca conseguiu se adaptar, um dia ela simplesmente desapareceu, depois de ter ido à procura de um namorado. Nunca mais tiveram notícias dela, sendo esse, até hoje, um dos maiores traumas da família. No final do depoimento, Veva registra: “Conceição, eu não tenho mais o que falar, só tenho que chorar porque nada está ao meu alcance, pois só existe esperança enquanto há vida. Paro por aqui e deixo o resto para a minha irmã desabafar no seu divã”.
Além dos desabafos, que faz desse livro um documento impressionante, mas nem por isso amargurado, Zuza narra passagens alegres, como a sua ligação com a Escola de Samba Cidade Jardim e o seu amor pelo carnaval. Sem deixar de lado a política: ela foi candidata a vereadora de BH pelo Partido Verde, recebendo 300 votos. Em outros momentos, mesmo discretamente, fala ainda de alguns amores, afinal de contas ninguém é de ferro. Para concluir com as seguintes palavras: “Aqui não tem uma mentira, não tem ficção, é tudo realidade, pode botar fé em minha escrita terapêutica. Tenho 63 anos de janela e 106 de experiência”.
Divã de papel
• De Maria de Jesus da Silva, a Zuza
• Anome Livros, 418 páginas, R$ 40
• Lançamento terça-feira, a partir das 18h30, na Academia Mineira de Letras, Rua da Bahia, 1.466. Informações: (31) 3222-5764.
Outros tempos
Em 1960, um livro escrito em primeira pessoa por uma mulher que vivia numa favela de São Paulo sacudiu a literatura brasileira. Quarto de despejo – Diário de uma favelada, despertou grande interesse por sua autora, Carolina Maria de Jesus, mineira de Sacramento, nascida em 1914, que se mudou para São Paulo em 1947. Além de descrever com força e crueza o dia a dia de comunidades pobres da metrópole, Carolina foi considerada uma das pioneiras da escrita feminina no Brasil. Quarto de despejo foi traduzido para 13 idiomas e adaptado para o cinema, TV e teatro. Carolina Maria de Jesus morreu em 1977.
Três perguntas para...
Maria de Jesus da Silva
Escritora
O que ficou para você de toda essa história de vida?
Disso tudo me ficou um aprendizado muito grande, mas não ficou revolta, porque consegui, graças à minha luta, transformar o limão em limonada e o sofrimento em graça.
Você chegou a estudar?
É claro que no orfanato aprendi alguma coisa, apesar da grande discriminação que eu e minhas irmãs sofremos, pelo fato de sermos negras. No mais, fui me virando por mim mesma. Na vida, a gente aprende a caminhar no amor ou no sofrimento. No meu caso, foi na dor e nos tropeços.
No livro você contou tudo?
Digamos que quase tudo. Só algumas coisinhas que não. Afinal de contas, todos nós temos segredos, que são inconfessáveis, e que devem ser levados para o túmulo.
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