sábado, 16 de novembro de 2013

ARNALDO VIANA - A confissão‏

Estado de MInas: 16/11/2013 




Há mais de 20 anos, o Chico morreu. Foi ao velório e ao enterro do amigo e, vendo-o no caixão, lamentou várias vezes a falta de coragem de chegar e contar. Conheceu o Chico quando chegou àquele escritório, aos 15 anos, para trabalhar na limpeza. Varrer e encerar as três salas e lavar o banheiro era tarefa mole para quem tinha as mãos calejadas do trabalho em pedreira. Depois, saía com as mãos cheias de faturas e correspondência para entregar aos clientes.

Chico, um pouco mais velho, já era auxiliar de escritório. Ficaram amigos. Às segundas-feiras, falavam das garotas do fim de semana, do futebol, das façanhas de adolescentes. Mais de 20 anos e ainda se lembra de todas as conversas. Chico de cabelos lisos, calças jeans, botinhas da moda. Um galã. Olhava-o com admiração. Não podia se comparar ao amigo na elegância, pois mal tinha duas mudas de roupa para trocar. E sapatos toscos escondiam meias furadas.

Ao meio-dia, um pouco mais, um pouco menos, chegava a marmita do Chico. Às vezes o pai, às vezes um irmão. Alguém trazia a comida. Olhava a comida. Um bife suculento, coberto por molho de tomate. Arroz, feijão, salada. Olhava a marmita do amigo, que sempre deixava a salada, e suspirava fundo. Terminado o almoço, Chico fechava a marmita e perguntava:
– E você, bicho, não vai almoçar?

– Vou sim, Chico. Vou descer e comer alguma coisa.

Descia as escadas de dois andares, correndo. Desfilava o corpo magro por três, quatro, cinco quarteirões. Contava as moedas e, quando dava, entrava no boteco e pedia uma média de café com leite e um pão com manteiga. Média é a medida de uma xícara de chá. Se não dava, comprava duas, três bananas. E não tirava a marmita do Chico da cabeça. Aquilo é que era almoço. Voltava e mentia:

– Chico, peguei um PF de tirar o fôlego: arroz, bife, ovo e farofa…

Comer, mesmo, só à noite, quando chegava em casa. A mãe deixava no forno um prato com arroz e feijão. De vez em quando, um chuchu refogado com carne picadinha.

Devia ter falado ao Chico de sua família. Dos nove irmãos. Do pai e da mãe. Da viagem em carroceria de caminhão, depois de ônibus e trem, do Vale do Jequitinhonha a BH. Da casa sem água encanada e esgoto alugada na última fronteira da periferia. Não, tinha que parecer ao amigo que morava bem, que comia do bom e do melhor, mesmo com as roupas e os sapatos dizendo o contrário.

O pior foi não ter confessado o olho guloso que botava na marmita depois daquela notícia que recebeu, numa manhã em que chegou ao trabalho e não viu o amigo. “O Chico está internado no sanatório. Tuberculose. Só sai em seis meses”, disse alguém. Encheu-se de coragem para visitá-lo um mês depois. Achou o Chico amarelo. Conversaram as coisas de sempre: futebol, garotas. E não deixou de fazer uma observação, talvez impertinente naquele momento:

– Chico, você não comia as verduras. Acho que você adoeceu por isso.

Do principal não falou. Não teve coragem de contar ao Chico que comia a marmita com os olhos. Aquele bife suculento, o molho, antes de sair rua afora para fingir que estava almoçando. Acreditava que tirou do amigo o que de mais nutritivo havia na marmita. Será que por isso ele ficou tuberculoso? Mas não foi essa a doença que o matou antes dos 40 anos. É que o Chico deu-se a beber. Exagerou. Mas e a tuberculose? Devia ter contado do olho na marmita. Devia.

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