José Miguel Wisnik
Itamar
Como todo grande cancionista, Itamar Assumpção é um amante da sílaba
O Iº Encontro de Estudos do Canto e da Canção
Popular, na Unicamp, me fez pensar em Itamar Assumpção e a canção
paulista, nesse momento em que Zélia Duncan, que lançou o CD “Tudo
esclarecido”, com músicas de Itamar, lança o DVD do seu show-monólogo
tecido com as canções de Luiz Tatit. Itamar tinha o desejo de fazer
sucesso, ao mesmo tempo em que parecia fazer tudo para impedi-lo, como
se provocasse e testasse, compulsivamente, a si e as leis do mundo e do
mercado musical. Essa era apenas uma das suas ricas complexidades e
apenas um dos seus complexos. Os arranjos de suas canções, em seus
discos, são muitas vezes sobrecarregados, excessivos, ou em
desequilíbrio inquieto, tanto dando força quanto obscurecendo as
canções. O “Tudo esclarecido” de Zélia funciona como uma lâmina
comparativa, em formato pop, que contribui para ouvir com transparência
certas propriedades internas a elas, mesmo que atenuando muito do que
elas têm de sombrio.
“Na sala numa fruteira/ a
natureza está morta/ laranjas maçãs e peras/ bananas figos de cera/
decoram a noite torta”. “Noite torta” é uma canção sobre a separação
amorosa, como tantas que existem. Mas só Itamar enuncia esse cortejo de
frutas mortas que se abate sobre a mesa da cozinha como uma cifra
lutuosa da ausência de alguém, que se faz sentir de repente ali.
Contribui para isso o uso sutil do verbo estar. “A natureza está morta”,
isto é, a natureza morta (como chamamos o arranjo decorativo de frutas,
agravado pelo fato de serem artificiais) ficou morta com a partida de
alguém. Vida morta ao cubo: a irônica morte da natureza morta,
destituída do sentido compartilhado. Mais do que semântica, a questão em
Itamar é sempre prosódica, porque a enumeração das frutas, feita em
pulso regular, como todo o resto, e numa melodia altamente comprimida,
faz saltarem em destaque as menores variações acentuais, como acontece
na palavra “maçãs”, no caso acima. Sei que é difícil explicar para quem
não ouviu, mas a questão é que as sílabas ficam oscilando como
partículas em suspensão e em colisão.
Por isso
mesmo Itamar, cantando, sabia instaurar uma frase repetida que, a partir
daí, parecia ficar dançando no ar, sozinha. É que esse negro paulista e
paranaense, morador da Penha, em São Paulo, sem o auxílio fusional do
samba, tem que ir ao âmago do suingue que mora nas menores flutuações
dos acentos dos ritmos e dos sentidos das palavras. É um suingue
decantado e que se dá num plano minimal e total. “Sozinha nessa cozinha/
em pé eu tomo um café/ na pia, a louça suja/ me lembra da roupa suja/
no tanque que a vida é”. A metáfora — a vida é um tanque de roupa suja —
fica muito mais rente ao real com esse festival de oxítonas que de
repente se instala na canção: “no tanque que a vida é”, rimando
rebarbativamente com “em pé eu tomo um café”. Aqui, a natureza está
(morta), e a vida, sem saída e amputada de adereços, é. São modulações
semânticas e prosódicas, no caso, dessa propriedade particular da língua
portuguesa, de distinguir, como poucas, o ser e o estar, e fazer isso
com um sutil corte rítmico. Não por caso uma outra canção de Itamar, em
parceria com Alice Ruiz, diz com gosto: “É de estarrecer: estar e ser,
em inglês, é a mesma coisa”.
“Enquanto penso nela/
observo o sol por detrás da serra/ e daquela singela capela/ bem da
janela da sala de espera/ desta bela tarde lilás amarela”. Nessa outra
canção, “Enquanto penso nela”, a obsessiva lembrança de alguém, pontuada
pela reiteração rítmica, é deslocada para a paisagem, na qual certas
palavras saltam à frente, movidas por suas simples propriedades
acentuais, como “singela” e “lilás”. “Observo o mar marejar a terra/
escaravelhos velhas caravelas/ sou sentinela de um barco à vela/ nesta
bela tarde lilás amarela”.
Em Itamar Assumpção a
canção é uma questão de escansão: o suingue interno às defasagens entre o
pulso métrico da música e o impulso do acento verbal. Como todo grande
cancionista, ele é um amante da sílaba. E deu-lhe status de rainha,
bordejando o vazio e o tanque de roupa suja da vida, de uma maneira
única. Gostaria de comparar aqui, contrastando, com a poética
pan-etonímica da sensibilidade em rede de Arnaldo Antunes, também única.
E com a decantação irônica das sílabas no próprio Luiz Tatit (com quem
terei a honra de me apresentar hoje, no Espaço Tom Jobim, no contexto do
Festival Villa-Lobos).
Mas não deu. Um exemplo
ainda da gaia ciência de Itamar. Quando morreu o amigo e parceiro Paulo
Leminski, Itamar, chamado a dar seu depoimento, declarou à “Folha de
S.Paulo”: “Leminski, aqui é Beleléu. Não fui no teu enterro, também não
irás no meu. Estamos quites, adeus”.
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