sábado, 16 de novembro de 2013

José Miguel Wisnik

José Miguel Wisnik

Itamar

Como todo grande cancionista, Itamar Assumpção é um amante da sílaba

O Iº Encontro de Estudos do Canto e da Canção Popular, na Unicamp, me fez pensar em Itamar Assumpção e a canção paulista, nesse momento em que Zélia Duncan, que lançou o CD “Tudo esclarecido”, com músicas de Itamar, lança o DVD do seu show-monólogo tecido com as canções de Luiz Tatit. Itamar tinha o desejo de fazer sucesso, ao mesmo tempo em que parecia fazer tudo para impedi-lo, como se provocasse e testasse, compulsivamente, a si e as leis do mundo e do mercado musical. Essa era apenas uma das suas ricas complexidades e apenas um dos seus complexos. Os arranjos de suas canções, em seus discos, são muitas vezes sobrecarregados, excessivos, ou em desequilíbrio inquieto, tanto dando força quanto obscurecendo as canções. O “Tudo esclarecido” de Zélia funciona como uma lâmina comparativa, em formato pop, que contribui para ouvir com transparência certas propriedades internas a elas, mesmo que atenuando muito do que elas têm de sombrio.
“Na sala numa fruteira/ a natureza está morta/ laranjas maçãs e peras/ bananas figos de cera/ decoram a noite torta”. “Noite torta” é uma canção sobre a separação amorosa, como tantas que existem. Mas só Itamar enuncia esse cortejo de frutas mortas que se abate sobre a mesa da cozinha como uma cifra lutuosa da ausência de alguém, que se faz sentir de repente ali. Contribui para isso o uso sutil do verbo estar. “A natureza está morta”, isto é, a natureza morta (como chamamos o arranjo decorativo de frutas, agravado pelo fato de serem artificiais) ficou morta com a partida de alguém. Vida morta ao cubo: a irônica morte da natureza morta, destituída do sentido compartilhado. Mais do que semântica, a questão em Itamar é sempre prosódica, porque a enumeração das frutas, feita em pulso regular, como todo o resto, e numa melodia altamente comprimida, faz saltarem em destaque as menores variações acentuais, como acontece na palavra “maçãs”, no caso acima. Sei que é difícil explicar para quem não ouviu, mas a questão é que as sílabas ficam oscilando como partículas em suspensão e em colisão.
Por isso mesmo Itamar, cantando, sabia instaurar uma frase repetida que, a partir daí, parecia ficar dançando no ar, sozinha. É que esse negro paulista e paranaense, morador da Penha, em São Paulo, sem o auxílio fusional do samba, tem que ir ao âmago do suingue que mora nas menores flutuações dos acentos dos ritmos e dos sentidos das palavras. É um suingue decantado e que se dá num plano minimal e total. “Sozinha nessa cozinha/ em pé eu tomo um café/ na pia, a louça suja/ me lembra da roupa suja/ no tanque que a vida é”. A metáfora — a vida é um tanque de roupa suja — fica muito mais rente ao real com esse festival de oxítonas que de repente se instala na canção: “no tanque que a vida é”, rimando rebarbativamente com “em pé eu tomo um café”. Aqui, a natureza está (morta), e a vida, sem saída e amputada de adereços, é. São modulações semânticas e prosódicas, no caso, dessa propriedade particular da língua portuguesa, de distinguir, como poucas, o ser e o estar, e fazer isso com um sutil corte rítmico. Não por caso uma outra canção de Itamar, em parceria com Alice Ruiz, diz com gosto: “É de estarrecer: estar e ser, em inglês, é a mesma coisa”.
“Enquanto penso nela/ observo o sol por detrás da serra/ e daquela singela capela/ bem da janela da sala de espera/ desta bela tarde lilás amarela”. Nessa outra canção, “Enquanto penso nela”, a obsessiva lembrança de alguém, pontuada pela reiteração rítmica, é deslocada para a paisagem, na qual certas palavras saltam à frente, movidas por suas simples propriedades acentuais, como “singela” e “lilás”. “Observo o mar marejar a terra/ escaravelhos velhas caravelas/ sou sentinela de um barco à vela/ nesta bela tarde lilás amarela”.
Em Itamar Assumpção a canção é uma questão de escansão: o suingue interno às defasagens entre o pulso métrico da música e o impulso do acento verbal. Como todo grande cancionista, ele é um amante da sílaba. E deu-lhe status de rainha, bordejando o vazio e o tanque de roupa suja da vida, de uma maneira única. Gostaria de comparar aqui, contrastando, com a poética pan-etonímica da sensibilidade em rede de Arnaldo Antunes, também única. E com a decantação irônica das sílabas no próprio Luiz Tatit (com quem terei a honra de me apresentar hoje, no Espaço Tom Jobim, no contexto do Festival Villa-Lobos).
Mas não deu. Um exemplo ainda da gaia ciência de Itamar. Quando morreu o amigo e parceiro Paulo Leminski, Itamar, chamado a dar seu depoimento, declarou à “Folha de S.Paulo”: “Leminski, aqui é Beleléu. Não fui no teu enterro, também não irás no meu. Estamos quites, adeus”.


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