Política vivida em público
Ricardo Fabrino Mendonça e Márcia Maria Cruz
Estado de Minas: 16/11/2013
As recentes manifestações que tomaram as ruas de diversos países ajudaram a enterrar a velha hipótese de uma dissociação constitutiva entre “engajamento on-line” e “mobilização efetiva”. Não é possível (como nunca foi) operar com uma dicotomia entre um suposto ativismo de sofá e a concreta manifestação de grupos de interesse em ações tidas como reais. A internet, em sua diversidade de plataformas e modos de interação, perpassa a vida pública contemporânea, configurando-se não como mero instrumento de mobilização, mas como um dispositivo que atravessa a própria construção dos sujeitos, de suas ações e da sociedade em que se inserem.
Não há, pois, como distinguir claramente o que é específico da internet ou mesmo linhas unidirecionais de difusão – como se os protestos “saíssem” da internet para ganhar as ruas. Nem mesmo de uma circularidade entre rua e internet poderíamos falar, já que tal ideia partiria da premissa de que há duas entidades claramente distinguíveis: a rua e a internet. O que parece claro é que não há como separar rua e internet, o que ajuda a contestar a ideia de que o dito mundo on-line é palco de um ativismo cômodo, descompromissado e inócuo, diferentemente da voz do povo nas ruas.
Dito isso, podemos dar mais um passo e pensar algumas consequências das recentes manifestações brasileiras. Há quem defenda que elas acabaram por se dissolver sem deixar muitas consequências. Um olhar atento ao processo revela, todavia, que ele tem sido bastante revelador e transformador. Não estamos, aqui, restringindo as consequências das manifestações às conquistas no plano da política institucional, embora algumas mudanças formais tenham, de fato, ocorrido. Essa redução do sentido das manifestações a conquistas institucionais implicaria desconhecer a própria natureza das manifestações. Mesmo porque seria extremamente difícil avaliar as conquistas em comparação com as demandas, tendo em vista a frequente manifestação pública de reivindicações contraditórias.
Assim gostaríamos de chamar a atenção para três transformações que emergem no bojo das manifestações e que dizem: (1) das formas de algumas lutas contemporâneas; (2) dos conflitos e dilemas experimentados no Brasil atual; (3) do tipo de participação almejada.
(1) As manifestações contemporâneas chamam a atenção por suas características organizacionais, que abrem novas possibilidades para as lutas sociais. Não defendemos, com isso, que elas sejam inteiramente inovadoras em suas estruturas e formas. Mas há de se reconhecer que o conjunto da obra tem certas especificidades. Um ponto que chama a atenção na organização destes protestos é a existência de diferentes níveis organizacionais no interior de uma manifestação. Se há pessoas mobilizadas efemeramente por meio de redes sociais e encontros casuais, existem conjuntos mais organizados de ativistas em torno de grupos, coletivos, movimentos ou associações. Se isso pode parecer óbvio, a compreensão das relações dinâmicas entre esses dois níveis organizacionais não é nada banal. Há pontos de convergência e de tensão entre esses níveis, sendo que os desdobramentos das lutas dependem dessas relações. Por um lado, é interessante observar, por exemplo, como a presença pública de um grande volume de pessoas permite ações que não seriam possíveis de outra forma. Afinal, os ditos “coxinhas” podem prestar um serviço aos ativistas de longa data. Por outro lado, é este mesmo volume que pode levar a uma dispersão das reivindicações. Um segundo ponto sobre a natureza organizacional das manifestações está relacionado a um processo de personalização da participação, que foi bem analisado por Lance Bennett e Alexandra Segerberg.
(2) Para além da dinâmica organizacional de alguns conflitos contemporâneos, as manifestações são reveladoras de conflitos e dilemas experimentados pelo Brasil. Em primeiro lugar, a pulverização das demandas gera uma competição simbólica sobre a efetiva natureza dos protestos. Nessa competição, vieram à tona discursos tradicionalmente invisíveis, que demonstraram sua força e capilaridade. É o que se nota, por exemplo, nos cartazes que propõem o retorno dos militares ao poder. Em segundo lugar, e no sentido de tornar discursos existentes visíveis, observa-se que as manifestações fizeram aflorar as tensões existentes em um país que se diz consensual. No Brasil para inglês ver, não havia conflitos religiosos, nem entre direita e esquerda, assim como o Brasil de outrora já foi visto como uma democracia racial. Ao questionar o mito de um país consensual e capaz de acomodar diferenças, as manifestações contribuíram para a exposição de dilemas muito significativos com os quais se faz necessário lidar.
(3) Uma terceira mudança apreensível a partir das manifestações diz respeito ao tipo de democracia almejada por parcelas significativas da população. Pode-se, facilmente, argumentar os perigos de um sistema político sem partidos para afirmar que os protestos contemporâneos não apresentam uma alternativa concreta à forma como as democracias liberais estão institucionalizadas. No entanto, é possível ler a crítica aos partidos como uma defesa por formas de organização política que aproximem eleitores e representantes e que gerem novas formas de expressão e consideração das opiniões dos cidadãos. Essa defesa implica transformações nas organizações partidárias, nos processos eleitorais e, também, nas próprias instituições participativas existentes. Os protestos parecem apontar para a insuficiência de certas instituições participativas existentes, demandando formas de debate mais inclusivas, abertas, articuladas e empoderadas.
A institucionalização informal desse
anseio nas assembleias populares é forte indício desse desejo. A
geração de diversos debates públicos historicamente silenciados (que vão
do acesso à cidade até a reforma política, passando por questões de
direitos humanos) também acena para o desejo de uma política construída e
vivida em público.
Ricardo Fabrino Mendonça é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG. Márcia Maria Cruz é jornalista.
Ricardo Fabrino Mendonça é professor adjunto do Departamento de Ciência Política da UFMG. Márcia Maria Cruz é jornalista.
Nenhum comentário:
Postar um comentário