sábado, 23 de novembro de 2013

O guardião [João Cândido Portinari] - Walter Sebastião

O guardião
 
Com paciência e determinação, João Cândido Portinari desenvolve o projeto que mantém vivo o legado do pai. Graças a ele evitou-se a pulverização de importante legado para a cultura brasileira


Walter Sebastião

Estado de Minas: 23/11/2013


João Cândido Portinari, o incansável protetor das artes plásticas brasileiras (Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
João Cândido Portinari, o incansável protetor das artes plásticas brasileiras

Amanhã é o último dia para ver a exposição Guerra e paz, em cartaz no Cine-Theatro Brasil Vallourec. Os monumentais painéis do carismático pintor Candido Portinari (1903-1962) revelam sua capacidade de se comunicar com todos os públicos, além do charme da pintura moderna em buscar novas formas para representar o mundo e os sentimentos humanos.

Mas esta exposição oferece mais: a extensa apresentação de documentos – esboços, cartas, recortes de jornais e fotos – sobre a obra de Portinari, com ricas informações sobre a época em que o pintor viveu.

Se o personagem principal de Guerra e paz é Candido Portinari, o herói da façanha vista em BH é seu filho único, João Cândido, de 75 anos. Deve-se a ele o projeto criado em 1979, referência em pesquisa de arte.

O ponto de partida para a formação do acervo foram os álbuns de recortes de notícias sobre o pintor reunidos por Maria Vitória Martinelli. A mulher do artista reuniu nada menos de quatro mil cartas. “Isso é prova de amor”, observa João Candido, lembrando que a mãe foi um dos esteios da carreira do pai.

O passo seguinte do Projeto Portinari foi coletar depoimentos de contemporâneos do artista. Localizar as obras, então dispersas, e a documentação sobre o pintor representaram um desafio para João Cândido. “Começamos um trabalho de formiguinha, fomos atrás de quem tinha cartas, fotos e documentos, mas era necessário que as pessoas soubessem do projeto. Isso só foi possível graças à solidariedade maciça da sociedade”, diz ele.

Milagres surgiram durante essa busca. Foi o caso da localização do quadro Baile na roça, obra do jovem Portinari recusada pelo Salão de Belas Artes em 1924. Entre os modelos do quadro está seu Batista, o pai do autor.

O ápice da empreitada se deu em 2004, quando o Projeto Portinari lançou o catálogo completo das obras do artista, com cinco volumes. Trata-se da primeira publicação do gênero relativa a um autor latino-americano. Ela veio a público 25 anos depois do início das pesquisas. “Tivemos de enfrentar gangues de falsários no Brasil e no exterior. Foi terrível”, lembra João Cândido. O processo de autenticação gerou ataques contra ele, mas valeu a pena. “Meu maior prazer é ver o brilho nos olhos das crianças, do público de todas as idades e classes. É arte que emociona”, resume.

Pai e filho João Cândido revela que o fato de rejeitar o mundo do pai foi um aspecto fundamental da criação do Projeto Portinari. “Era difícil conviver com uma figura tão gigantesca como ele”, conta. Por volta dos 15 anos, quando ia a festinhas com amigos, ele era invariavelmente apresentado como “o filho de Portinari”. O garotão, que gostava de praia, de futebol e de namorar, achava chatíssimo acompanhar compromissos familiares ligados ao mundo da arte.

Certa vez, ao chegar da praia, João entrou pela porta da cozinha. Os convidados conversavam depois do almoço. “Vi um cara na varanda, uma espécie de jardim de inverno, tocando o meu violão. Pensei: ele vai desafinar meu instrumento. Perguntei à minha mãe quem ele era. Ela disse: ‘Villa-Lobos’. Foi a maior vergonha da minha vida”, diverte-se. Para aquele rapazinho, a garota da esquina era mais interessante do que todos aqueles intelectuais famosos.

“Jovem, senti que seria esmagado se não saísse de casa”, diz João Cândido, esclarecendo que esse sentimento não significa desamor pelo pai. Aos 18 anos, ele foi estudar matemática em Paris. Fez engenharia e só voltou ao Brasil em 1970. “Encontrei uma ditadura, um país estranho, completamente distorcido e totalmente diferente do que deixei.” Professor de matemática no Rio de Janeiro, ele evitava falar do pai. “O assunto me incomodava.”

 Ao ler um artigo em que Antônio Calado denunciava a segregação das obras de Portinari em coleções particulares e salas de banco, João tomou um susto. O pintor estava se tornando invisível, revoltava-se o escritor e jornalista. Foi assim que João decidiu resgatar a memória não só de seu pai, mas do Brasil. “Nos anos 1970, ele estava esquecido, atacado como artista e até em sua honra. Contemporâneos dele já haviam morrido, não havia ninguém para defendê-lo. Até por revolta contra esses ataques, larguei a matemática e mergulhei no Projeto Portinari”, conta. Dedicada às crianças, a primeira publicação do programa traz um texto de João – em paz com a obra do pai.

GUERRA E PAZ
Painéis, quadros, vídeo, fotos e textos do pintor Candido Portinari. Cine Theatro Brasil Vallourec, Praça Sete, Centro, (31) 3201-5211. Hoje, das 10h às 22h (horário especial); amanhã (último dia), das 10h às 19h. Visitas guiadas a cada 60 minutos. Entrada franca. Em maio, a mostra será apresentada no Grand Palais, em Paris. Em junho, os painéis pintados pelo brasileiro voltam para a sede da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York. Informações: www.portinari.org.br e www.guerraepaz.org.br


Organização é fundamental


Família cuida do acervo do artista Amilcar de Castro (Beto Novaes/EM/D.A Press)
Família cuida do acervo do artista Amilcar de Castro

Até existe documentação sobre a vida e a obra de artistas visuais de Belo Horizonte. Geralmente, esse material está disperso. Raramente o acervo é reunido organizadamente, embora haja autores que, por temperamento, assim o façam, ou parentes empenhados na tarefa. Pesquisadores são unânimes em ressaltar a importância da documentação, pois se trata de fonte primária para o estudo do artista e da história da arte.

Museu Inimá de Paula, Instituto Amilcar de Castro e Projeto Pedro Moraleida disponibilizam material dessa natureza para pesquisadores. O Instituto Inhotim mantém trabalho regular e específico, produzindo documentação sobre obras de arte. Criadas especificamente para o local, elas ganham seu próprio dossiê, informa o curador Rodrigo Moura. O programa de Inhotim envolve coleta de documentos originais (esboços, fotos, anotações e projetos arquitetônicos), material relativo ao registro e à implantação das obras, amostra de materiais, fotos, filmes e entrevistas.

A historiadora Marília Andrés, diretora do instituto dedicado à obra da pintora Maria Helena Andrés, diz que a pouca valorização de arquivos pessoais às vezes se deve ao próprio artista. “É no contato com o historiador, com o pesquisador, que o próprio autor começa a entender o valor dessa documentação”, observa. No caso de Maria Helena Andrés, mãe de Marília, a família optou por levantar e restaurar obras, além de criar espaço expositivo em Entre Rios de Minas.

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