sábado, 23 de novembro de 2013

Paisagens imaginárias [Umberto Eco] - João Paulo

Paisagens imaginárias
Umberto Eco dá sequência à sua peculiar história das ideias e da arte com livro sobre lugares que se tornaram lendas ao longo dos séculos. Estudo combina erudição filosófica e iconografia 
 
João Paulo

Estado de Minas: 23/11/2013


Enéas desce ao averno, de Nicolò del'Abattte, século 16  (Editora Record/Reprodução)
Enéas desce ao averno, de Nicolò del'Abattte, século 16

Um livro maravilhoso. Não pode ser outra a definição de História das terras e lugares lendários, de Umberto Eco. Como o nome indica, o romancista, semiólogo e filósofo italiano desta vez oferece ao leitor uma geografia tão rica como fantástica. Na sequência de seus originais livros de arte (História da beleza e História da feiura), Eco traz para o primeiro plano os cenários mais importantes da história da imaginação humana. E o resultado é triplamente maravilhoso: pelos lugares em si, pátrias de maravilhas; pelo texto sempre erudito e sofisticado do autor; e pela riqueza da pesquisa iconográfica, que percorre o arco desenhado pela história das artes no Ocidente e Oriente.

Umberto Eco, com seu conhecido senso tomista e classificador, certamente é cuidadoso na escolha de seus sítios lendários. Não se trata, como no livro de Alberto Manguel (Manual dos lugares fantásticos), de uma enciclopédia na qual cabem desde lugares fictícios criados por romancistas até endereços reais que ganharam a aura do maravilhoso em razão da história que abrigam. Se para Manguel, por exemplo, o País das Maravilhas é um local tão real como o chão que se pisa, para Eco é apenas uma criação literária, uma invenção. O que ele persegue são as lendas que se tornam críveis.

E nesse terreno, esclarece o autor, há desde continentes como Atlântida, que habita as convicções dúbias de muitas mentes ao longo dos séculos, até terras atualmente existentes, ainda que em forma de ruínas, como Alamut, em torno da qual circulam lendas ancestrais. O que convoca a inteligência e erudição de Umberto Eco não são as lendas em si ou os lugares imaginários ou reais em que se sedimentam, mas a capacidade que têm de gerar um fluxo de crenças.

E é com esse intento que o autor passa a sua seleção de lugares lendários, como as mitologias em torno da forma da terra (da terra plana sustentada por tartarugas à existência dos antípodas), o país da rainha de Sabá, as terras percorridas por Homero em sua Odisseia, Camelot, Atlântida, as migrações do Graal, as diversas ilhas da Utopia, o país da Cocanha, a ilha de Salomão, o interior da terra e o mito polar, a invenção de Rennes-le-Chatêau, entre outros destinos fantásticos que habitam nosso repertório de mitos.

Dividido em 15 capítulos, História das terras e lugares lendários é composto da soma de muitas astúcias. Em primeiro lugar o texto de Umberto Eco. Com conhecimento enciclopédico sobre os temas, o autor tece comentários que vão trazendo para o leitor informações e julgamentos de vários pesquisadores que trataram do tema, sempre com leveza e sem arrogância. Como uma boa história das ideias, que vai desde as fontes primárias aos comentadores mais contemporâneos. É o caso, por exemplo, do capítulo dedicado a Homero, “As terras de Homero e as sete maravilhas”.

Umberto Eco tem a elegância de, antes de chegar ao tempo homérico, descrever sucintamente o universo da mitologia grega e seus personagens, para só depois introduzir Ulisses e seu périplo. O autor se faz uma pergunta: é possível desenhar o mapa das peregrinações do herói em sua fuga em direção a Ítaca? O que parecia ser apenas uma jornada de cotejamento entre o texto da epopeia e o mapa contemporâneo se mostra uma operação imaginária.

Eco vai revelando as várias tentativas frustradas de realizar essa empresa, citando esforço de autores que vão da Antiguidade ao século 21. E, para mostrar que o assunto é controverso, resgata a contribuição de Wolf, que elencou nada menos que 80 teorias bizarras sobre a viagem do herói grego. Ulisses, para Frau, por exemplo, em vez de cumprir sua jornada no Mediterrâneo, teria navegado na verdade nas águas do extremo norte da Europa, sendo que sua saga teria sido reformulada coma migração das populações nórdicas para o Egeu.

Medieval e moderno Se no texto Umberto Eco constrói uma rica história mitológica e das formas de crer e divulgar os mitos entre povos, no que toca à iconografia a obra é igualmente plural. São centenas de reproduções de quadros, mapas, esculturas e desenhos, que circundam o texto em diálogo com a dinâmica das crenças. Além de ampla, a pesquisa permite outras operações simbólicas, já que muitos mitos e lugares são retratados de forma peculiar em diferentes períodos da história. A figuração de um lugar fantástico por um artista antigo, medieval ou moderno não diz apenas do lugar retratado, mas dos repertórios estéticos e filosóficos de cada momento. O olhar, propõe Eco, é tão informativo quanto informado. Como fica claro, por exemplo, quando analisa o mito dos hiperbóreos e seu ideal de pureza racial, que repercute séculos depois no nazismo e seu peculiar culto de imagens arianas.

O capítulo “O interior da Terra, o mito polar e Agarttha” mostra como a iconografia vai construindo uma história por meio de imagens. A primeira ideia que vem à mente quando se fala em coração da Terra é a do reino dos mortos, com suas figurações do Hades, como as de Nicolò dell’Abate e Tintoretto, no século 16. Mas as vísceras da Terra também apontam para certa concepção de mundo subterrâneo que inspiram desenhos que mesclam fantasia e ciência. A mesma região é também território de outras fantasias, como as da Viagem ao centro da Terra, de Jules Verne, com sua rica pletora de ilustrações imaginosas de monstros e outras criaturas. O mundo abaixo da superfície é inspiração para fantasias que vão de jardins de cogumelos gigantes ao mundo dos hobbits de Tolkien. Sem falar dos mitos orientais e dos terrenos polares que atravessam fendas em direção ao subterrâneo, como em Horizonte perdido.

O terceiro elemento de que Umberto Eco lança mão em História das terras e lugares lendários é a seleção de textos originais que completam cada capítulo. Dono de erudição insuperável e sem preconceitos, o autor dá ao leitor o prazer de ler os clássicos, criando um diálogo amigável entre tradição e sensibilidade contemporânea. No capítulo “As ilhas da Utopia”, Eco convoca Thomas Morus e sua Utopia (1516), Tommaso de Campanella, de A cidade do sol (1602), Francis Bacon (1627) e sua Nova Atlântida, Johannes Valentinus Adreae (1619) e a Republicae christianopolitanae, Jorge Luis Borges (1940) e o conto “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius” e o Apocalipse bíblico. Em outros capítulos, fontes menos canônicas marcam presença, de Bram Stocker, de Drácula, a Carlo Collodi, de Pinóquio.

O último capítulo do livro “Os lugares do romance e sua verdade” está mais próximo do leitor de hoje. Os sítios lendários deixam a tradição ancestral para se aproximar de uma mitologia mais moderna, mas igualmente geradora de crenças e fantasias. São lugares como a ilha de King Kong, a caverna do Fantasma, Nárnia, Terra-média, o deserto dos tártaros, Rick’s Café e até mesmo Gotham City. Umberto Eco, ao mergulhar na verdade da ficção depois de seu longo itinerário pela ficção da verdade, parece deixar acertado que, pelo menos entre as pessoas sensatas e sábias, nada é mais verossímil que a lenda. Por isso somos humanos: para seguir acreditando no paraíso. E temendo o inferno.

HISTÓRIA DAS TERRAS E LUGARES LENDÁRIOS
• De Umberto Eco
• Editora Record
• 480 páginas, R$ 165

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