sábado, 14 de dezembro de 2013

DEUSA Adélia Prado - João Paulo E Carlos Herculano Lopes‏

Dentro e fundo
 
Adélia Prado lança livro de poemas, Miserere, no qual retoma o diálogo com temas como a religião, a passagem do tempo, a memória e a morte. Escritora mantém rotina em sua casa em Divinópolis

 

Carlos Herculano Lopes
Estado de Minas: 14/12/2013 


Em seu novo livro de poemas, Adélia Prado conversa com Deus e convoca o leitor para ser testemunha       (Marcos Vieira/EM/D.A Press)
Em seu novo livro de poemas, Adélia Prado conversa com Deus e convoca o leitor para ser testemunha
 

Quarenta anos depois de ter apresentado seus poemas a Affonso Romano de Sant’Anna, que entusiasmado com a leitura dos mesmos os mostrou a Carlos Drummond de Andrade, que por sua vez recomendou a publicação – o primeiro livro, Bagagem, sairia em 1976 com as bênçãos do poeta maior –, Adélia Prado, depois de três anos de A duração do dia, lança Miserere. O novo volume de poemas só vem confirmar sua condição de maior poeta viva do Brasil, ao lado do maranhense Ferreira Gullar, do padrinho mineiro Affonso Romano e do pantaneiro Manoel de Barros. A temática mística e religiosa que a tem inspirado continua forte.

Lançando mãos dela, Adélia explora, com sensibilidade à flor da pele, que às vezes chega até a doer, os eternos sentimentos humanos de abandono, solidão, alegria contida e, às vezes, desencanto, mas sem nunca perder a fé, a esperança e a vontade de viver em toda plenitude. Como em “Pomar”: “Os açúcares das frutas/ me arrombaram um jardim/ a meio caminho de trincar os dentes/ a doce areia, seus cristais de mel./ A vibração do que chamamos vida”.

Vivendo em Divinópolis, onde nasceu em 1935, se casou e criou família, Adélia Prado diz que sua poesia, independentemente dos rumos que tenha tomado desde Bagagem, a deixa muito feliz, porque o rumo é sempre o da beleza. “Drummond disse: ‘Poesia, o perfume que exalas é a tua justificação’. É só trocar perfume por beleza e continua perfeito. De 1976 para cá o que aconteceu foi, acredito, um aprofundamento. Novas experiências e você desce um pouco mais na ‘mina escura e funda’, com uma lanterna mais potente. Quanto maior a escuridão, mais preciso de luz. E a poesia é, como toda luz, pura generosidade. É a luz da divina luz”, diz Adélia. Esta “mina escura e funda”, no seu caso, foi se iluminando à medida que se aprofundava na escrita, que com o tempo foi se sofisticando, sem perder a simplicidade.

Já em 1978, dois anos depois da publicação de Bagagem, ela lançou livro que deu o que falar nas rodas literárias, O coração disparado. Em seguida, vieram novos volumes de poemas, como Terra de Santa Cruz, O pelicano e Oráculos de maio. Adélia se consagrou também na literatura infantojuvenil e na prosa, com Solte os cachorros, de 1979, Os componentes da banda, em 1984, O homem da mão seca, de 1994, entre outros.

Leitora constante da Bíblia desde a juventude, pois segundo ela não há como não visitar frequentemente as escrituras, com seus profetas e salmos, que oferecem um anúncio de salvação, Adélia confirma que o sentimento religioso e místico continua forte em Miserere. “Muita gente vive com o que podemos chamar de ‘uma fé natural’, que se vale dos afetos e valores numa medida mínima de proteção e conforto humanos. Não se desesperam e isto para mim é milagroso, inacreditável”, afirma.

Mas a sensualidade feminina, brejeiramente mineira, também é mostrada sem rodeios e nenhum medo de ser feliz, como no poema “A paciência tem limites”: “Dá a entender que me ama,/ mas não se declara./ Fica mastigando grama,/ rodando no dedo sua penca de chaves,/ como qualquer bobo./ Não me engana a desculpa amarela:/ ‘Quero discutir minha lírica com você’./ Que enfado! Desembucha, homem,/ tenho outro pretendente/ e mais vale para mim vê-lo cuspir no rio/ que este verso doente”.

Escritora exigente, que sempre revisita seus textos, Adélia conta, sobre o seu processo de escrita, que, pelo menos no seu caso, poucos poemas permanecem como chegam. “Só alguns nascem limpos. Aos outros dou um banho para tirar o sebo da criança. Da inspiração e seus excessos, tiro os excessos”, conta. Sobre a infância, também tão presente na sua obra, ela diz ser um lugar aonde vai sempre, cada vez com mais encantamento. “É onde quero ficar, onde a morte, Deus e a vida estavam em feliz unidade. Perdê-la é perder-me, é ficar velha sem cura, porque sem a alegria e os deslumbramentos que ganhei”, diz.

Sempre quietinha em Divinópolis, ao lado do marido, Zé de Freitas, com o qual está casada há muitos anos, Adélia diz que gosta de viver na cidade, já que a família quase toda está lá. Mas às vezes, por questões de ofício, também costuma viajar para participar de feiras de livros e bater papo com os leitores. “Fazer palestra é bom, tem audição e questionamentos, é um encontro sem nada acadêmico”, descreve.

Com o lançamento de Miserere, que chega hoje às livrarias, certamente terá de pegar novamente a estrada. Se gosta de viajar de avião? “Arrisquei outro dia”, conta. Para em seguida dizer que, na vida, o que importa é ter fé, “porque isso significa aceitá-la como um dom, cuja finalidade e sentido ultrapassam a pobreza de nossa razão e nos ensinam a comportar como criatura, com humildade e reverência”.

Miserere
. De Adélia Prado
. Editora Record, 94 páginas



Movimento dos lábios

João Paulo

O título do livro, em latim, Miserere, pode indicar muitas coisas: a proximidade da religião, com seu cheiro de coisa antiga e distinta; a aceitação do destino de sofredora; o pedido de misericórdia, um “tem piedade de nós” repetido como um mantra a cada constatação de uma dívida impagável. Adélia não usa as palavras sem pesar todos os sentidos. Miserere é um livro que vem sendo escrito com o passar dos anos, ele carrega toda a poesia de Adélia, todas as suas idades, todos os tempos que vão se juntando, o arco de uma vida com suas estações e direção ao fim.

Com 38 poemas, todos magníficos, Adélia Prado refaz sua ligação direta entre o sagrado e a poesia. Há um arranjo entre a beleza e a busca de sentido que transforma o projeto literário em uma empresa pessoal, um operoso caminho ascensional que se nutre das substâncias mais comuns: a memória, o prazer das coisas simples, a carne, o mistério e o encontro. A poeta parece ter deixado de lado o empenho em gozar o mundo para tentar se localizar nele. Achar seu cantinho. Sentir a comunhão com o próximo.
As referências se mantêm: Guimarães Rosa, na confissão da sapiência desconfiada; a Bíblia, em suas referências ao mesmo tempo dolorosas e gozosas; a vida besta drummondiana, misto de aquiescência e revolta; os signos da infância ou mesmo mais antigos, de um tempo anterior à fissão com o todo, a deixar seus convites para a recuperação da síntese no seio do todo.

Adélia Prado é mestra das palavras humílimas e senhora do sentido de verbos cheios de garbom, que usa parcamente. As imagens que brotam da fala da gente simples quase sempre perfazem o caminho da revelação: a beleza escondida, a inteligência penetrante, a sabedoria de viver. Cada poema de Miserere parece propor um tipo de conversa, que primeiro apresenta uma fatia do mundo, uma certeza ou dúvida íntima, depois se volta para o outro, para, por fim, tentar a síntese, fazer valer o tino de ser entre outros.

Se a poesia é trânsito, a poeta precisa aceitar para onde está indo. Adélia sabe. Por vezes, segura o passo: “Tão lírica minha vida/ difícil perceber onde sofri”; outras vezes mergulha no passado como quem vira as costas ao tempo: “Sou-lhe tão grata mãe/ sinto tanta saudade da senhora…” ; mas sem desmerecer o tempo que passou, ou nada disso teria sentido: “Minha mão tem manchas;/ pintas marrons como ovinhos de codorna”.

 Com o horizonte da morte sempre presente, cada vez mais à espreita, ela parece se lembrar a todo momento da mãe e do pai. Torna-se um pouco os próprios pais, sente em suas palavras eco do que ouviu e viveu com eles. De repente, temos a idade de nossos pais e ainda sentimos, em algum lugar do corpo, que somos crianças. A experiência da orfandade é uma recuperação da meninice: nunca estamos totalmente preparados para a solidão que nos alcança um dia. “Criancinha de peito, essa já sabe/ seu olhar muda quando desmamada”.

Há algumas imagens de grande força que se incorporam ao repertório adeliano com sua permanente sensibilidade para gerar o inusitado do sentido a partir dos momentos mais singelos: “Como o doido, bato a cabeça só pra gozar a delícia de ver a dor sumir quando sossego”; “Fiquei mais corajosa,/ igual a mulheres que julgava levianas/ e eram só mais humildes”; “as axilas do Deus de Michelangelo,/ profundas, musculosas, bravas,/ abundantes do suor de quem trabalha duro”.

A leitura de Miserere se parece com uma forma de oração. As palavras ao princípio fazem muito sentido e depois vão sendo tragadas pela beleza e passam a ter outra encarnação. Ao ler os lábios começam a se mover, como se tentassem formular um certo nome, indizível, mas sempre presente. Há a reza dos crentes, dos pensadores sem fé e das pessoas comuns. Ao longe só se vê o movimento dos lábios. Adélia põe as palavras na nossa boca. A poesia ensina o caminho do coração e da inteligência. E ainda clama por misericórdia. Só a poesia salva.


O pai

Adélia Prado


Deus não fala comigo
nem uma palavrinha das que sussurra aos santos.
Sabe que tenho medo e, se o fizesse,
como um aborígene coberto de amuletos
sacrificaria aos estalidos da mata;
não me tirasse a vida um tal terror.
A seus afagos não sei como agradecer,
beija-flor que sob meus olhos desabrocha,
três rolinhas imóveis sobre o muro
e uma alegria súbita,
gozo no espírito estremecendo a carne.
Mesmo depois de velha me trata como filhinha.
De tempestades, só mostra o começo e o fim.

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