Assinado, Ana Cristina C.
João Paulo
Estado de Minas: 14/12/2013
Ana era bela, culta e marcada pelo saturnismo das favoritas dos deuses |
Há 30 anos morria Ana Cristina Cesar (1952-1983). Foi uma das maiores poetas de sua geração. Tinha 31 anos quando pulou de um prédio. Deixou quatro livros de poemas.
A geração de Ana Cristina fez uma poesia marcada pela informalidade. Reproduzia seus versos em mimeógrafos, tinha bandeiras políticas libertárias em meio ao consenso de um esquerdismo mais canônico e menos criativo.
Ana C., como também assinava, parecia estar em boa companhia. Mas sua poesia, embora parecida por fora, era muito diferente por dentro. Ela era singular. Mesmo que seus versos fossem atravessados pela fala do dia a dia, que seus poemas fossem coloquiais, que seus temas se aproximassem do lirismo meio underground dos amigos, sua dicção era outra.
Era outra sua raiz literária, e muito distinta sua visão de mundo. Em política, mesmo que expressasse certa força do feminino, não poderia nunca ser considerada feminista de queimar sutiãs. Ana tinha humor, mas distante do poema-piada oswaldiano. Suas edições caprichosas estavam em outro degrau de acabamento. O que no mimeógrafo era primeiro singeleza que se revelava estética, nela era uma opção sofisticada pelo minimalismo e sugestão.
A hora, passados 30 anos, é de ler e reler Ana Cristina Cesar. Por isso a bela edição de Poética, com a poesia completa da escritora, organizada mais uma vez na ponta dos dedos pelo poeta e amigo Armando Freitas Filho para a Editora Companhia das Letras, é uma das melhores notícias literárias do ano.
O livro chega poucos meses depois de Toda poesia, de Paulo Leminski (1944-1989), outro grande solitário de uma geração gregária. A obra poética completa do curitibano chegou a frequentar os mais vendidos. Leminski, contudo, era um mestre em comunicação, dominava os códigos do pop. Seu dia haveria de chegar.
Já Ana Cristina, no mesmo patamar de qualidade e isolamento, cozia mais para dentro. Sua sofisticação era exigente demais para ganhar as massas. Não seria capaz, acredito, de fazer letras de canções. Tudo que era tropicalista em Leminski era romântico e crítico em Ana. Sua poesia, mesmo embalada pela confissão, tinha sempre um momento que fugia ao real, como um despistamento. Um fingimento, como diria Pessoa.
Poética é um livro poderoso. O próprio nome dá a pista: não se trata de poesias completas, o que indica uma reunião de livros e poemas esparsos, mas de uma poética, de um jeito de ser e de um modo de expressão. Ana Cristina Cesar, ao escrever poemas tão pessoais e intransferíveis, ia tecendo ao mesmo tempo sua poética.
A trajetória de Ana C. foi semelhante à de muitas mulheres de sua geração. Formou-se em letras na PUC Rio, fez mestrado em comunicação na UFRJ e mestrado em tradução na Inglaterra. Colaborou com jornais e revistas literárias, traduziu literatura inglesa e seu primeiro livro publicado não foi de poesia, mas o ensaio Literatura não é documento, um estudo sobre a presença da literatura no cinema.
Sua primeira aparição como poeta em livro foi em 1976, no agora mítico 26 poetas de hoje, organizado por Heloísa Buarque de Hollanda. Foi uma espécie de tábua da lei da poesia marginal, com Heloísa fazendo o papel de Moisés. O primeiro livro com o nome de Ana na capa foi Cenas de abril, de 1979. Como lembra Armando Freitas Filho, não era poesia escrita nas linhas, mas nas “entrelinhas dos sentidos”.
Obra incompleta
O primeiro livro era fino, em todos os sentidos, denso, com versos que deixavam claro, à primeira leitura, que estava ali uma poesia feita de talento, inteligência e reflexão. Quando todo mundo se esforçava para ser diferente e original, Ana não mexia uma palha para impressionar com suas cenas. Ela desafiava o leitor em vez de diverti-lo ou oferecer um sentimento complacente de fazer parte de sua turma. Ana não tinha turma, as pessoas é que precisavam ir atrás dela.
Cenas de abril, em poucas páginas, tinha um pouco de tudo: pequenos poemas quase epigramáticos, trechos de diários, um guia semanal de ideias, um jornal íntimo e um texto em prosa. O feminismo, que Heloísa Buarque de Hollanda destacaria alguns anos depois, destoava das palavras de ordem e exigia, além da nova mulher, um novo homem para dar conta dela.
O segundo livro da poeta, Correspondência completa, de 1979, chegou assinado por Ana Cristina C., em pequeno formato (ele é reproduzido tal e qual em Poética, como um mimo) com a enigmática anotação: 2ª edição, mesmo que nunca houvesse sido publicada a primeira. Na verdade, a correspondência completa era composta de apenas uma carta, escrita por Júlia, para alguém que não sabemos quem é. Dois personagens citados, Gil e Mary, fazem leituras distintas do que vai escrito. É poesia, mas em prosa. Mas prosa inventiva, que parece deslizar da invenção para o humor, da sinceridade quase ingênua para a mais astuta observação.
O terceiro título de Ana Cristina Cesar é Luvas de pelica, de 1980. O texto radicaliza ainda mais o projeto híbrido da escritora, em fluxo que vai da prosa à poesia, da invenção à confissão. Em alguns momentos a reflexão é quase ensaística. Há uma levada jazzística, que às vezes parece improvisação, mas que não perde a base harmônica sobre a qual as ideias e a música verbal tecem suas melodias desviantes. Há muitas citações confessas e outras veladas, versos em inglês, trechos que parecem esboços.
Quando a Editora Brasiliense, a mais prestigiada da época, lança A teus pés, em 1982, Ana Cristina já está consagrada entre os marginais. A edição fez sucesso, ganhou resenhas nas principais publicações do país. O volume traz poemas inéditos e reúne os trabalhos anteriores. O livro ficou como a consagração de um modo poético que funde tensão e intensidade, militância e libertarismo, originalidade e vampirismo, intimismo e confissão, por vezes despudorada. Elegância e desprezo às convenções.
E estamos apenas no primeiro terço do caminho da Poética. Os quatro livros de poesia publicados em vida por Ana Cristina Cesar vão até a página 125, as restantes 275 são ocupadas pelos livros Inéditos e dispersos: poesia e prosa, de 1985; Antigos e soltos poemas e prosas da pasta rosa, de 2008; e de uma visita à oficina. O volume é completado por textos críticos de Viviana Bosi, Heloísa Buarque de Hollanda, Silviano Santigo, Clara Alvim e Joana Matos Frias, entre outros.
O fato de a posteridade ser tão rica e inclusive mais volumosa que os versos dados a conhecer em vida, parecem indicar o inacabamento essencial da obra de Ana Cristina Cesar. Sua poesia não era de ponto final. Melancólica, iluminada pelo sol negro, ela ressurge em outro tempo com as mesmas questões. Talvez agora estejamos prontos para ela.
De Ana
“O tempo fecha.
Sou fiel aos acontecimentos biográficos.
Mais que fiel, oh, tão presa! Esses mosquitos que não largam! Minhas saudades ensurdecidas por cigarras! O que faço aqui no campo declamando aos metros versos longos e sentidos? Ah que estou sentida e portuguesa, e agora não sou mais veja, não sou mais severa e ríspida: agora sou profissional.”
A teus pés
Cartilha da cura
As mulheres e as crianças são as primeiras que
Desistem de afundar navios
A teus pés
Noite de Natal,
Estou bonita que é um desperdício.
Não sinto nada
Não sinto nada, mamãe
Esqueci
Menti de dia
Antigamente eu sabia escrever
Hoje beijo os pacientes na entrada e na saída
com desvelo técnico.
Freud e eu brigamos muito.
Irene no céu desmente: deixou de
trepar aos 45 anos
Entretanto sou moça
estreando um bico fino que anda feio,
pisa mais que deve,
me leva indesejável pra dentro das
botas pretas
pudera
Cenas de abril
Sobre Ana
“Nos textos em pauta, bem pouco inocentes, pode-se sentir a bisca de uma via alternativa para a discussão da condição feminina avançando, inclusive, no sentido do questionamento da condição masculina. Os pequenos temas se tornam complexos e adquirem nova dimensão pelo trabalho sobre os pontos nevrálgicos do ‘insondável mistério da alma feminina’.”
. Heloísa Buarque de Hollanda
“Ana Cristina encarava a modernidade. Talvez por isso tenha morrido cedo – pura passagem permanente – muitas asas e um desdém pelo que poderia ser raiz. O lugar que ocupa é na linha do horizonte – virtual e veloz.”
. Armando Freitas Filho
“A crítica tem sido unânime em isolar Ana Cristina Cesar dos restantes poetas marginais – uma marginalização que, afinal de contas, se torna inevitável perante qualquer grande artista que, justamente por ser grande, se distingue da geração que o viu nascer. Ana Cristina, astro trágico e excepcional da sua geração, gozou daquela ascendência saturnina que é sinal de destino incomum, e talvez tenha desaparecido tão cedo, aos 31 anos, para que uma vez mais se cumprisse a lei que Menandro enunciou: morrem jovens os que os deuses amam.”
. Joana Matos Frias
jpaulocunha.mg@diariosassociados.com.br
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