sábado, 7 de dezembro de 2013

Inquietação e prazer - Caio Junqueira Maciel

Inquietação e prazer - Caio Junqueira Maciel


Novo livro de contos de Luiz Vilela sugere contraponto entre natureza e cultura, com a presença discreta, mas significativa, de animais em todas as histórias 
 
Estado de Minas: 07/12/2013


Romancista e contista, Luiz Vilela mira nos eventos banais para mergulhar no sentido da existência  (Rodrigo Clemente/EM/D.A Press)
Romancista e contista, Luiz Vilela mira nos eventos banais para mergulhar no sentido da existência

 “Andava pelo quinteiro, muito asno, muito parvo, como se mesmo a dois passos não estivesse a acontecer aquela grande desgraça. É certo que também ele, Nero, vira morrer o gato, um sem-número de frangos e galinhas, e cada ano seu porco, sem o menor estremecimento. A verdade, acima de tudo. Mas desta vez, o caso mudara de figura: finava-se um cão...”


Miguel Torga, “Nero”, Bichos


Para tratar da recente coletânea de contos de Luiz Vilela, Você verá, lanço mão de um texto do português Miguel Torga, autor de um belo e estranho volume de contos intitulado Bichos, publicado em 1940.

 Sabe-se que o escritor mineiro, com certa obsessão, sempre valorizou os animais irracionais em sua obra, muitas vezes até relativizando a noção de racionalidade no confronto entre bicho e homem. E, ao pôr em cena um cão, um gato, uma lagartixa, um pássaro, um gambá, um tatu, o que se vê, em verdade, é o drama humano, é a situação limite que ronda todos os seres perecíveis. Se Miguel Torga centrava toda a ação narrativa em personagens-bichos com nomes humanos, Luiz Vilela nem sempre situa o bicho como protagonista, mas frequentemente como discreto coadjuvante, e, com isso, sutilmente estabelece um contraponto entre natureza e cultura, premiando o leitor com alta voltagem de inquietação e também de prazer.

São 11 os contos de Você verá e, a rigor, apenas o primeiro, “Zoiuda”, apresenta uma lagartixa como personagem marcante, cuja participação é a de fazer companhia a um solitário e desiludido professor de português. A aparição e sumiço desse animalzinho pontuam uma vida de tédio do protagonista, mas que chega a pressentir um “minúsculo coração” que poderia estar “batendo um pouquinho mais forte” (p.7). Não seria a literatura exatamente uma das artes que provocam esse tipo de emoção?

No conto “Era aqui”, o homem mostra à namorada o lugar onde outrora havia o campinho de futebol de sua infância. Em meio à crítica sobre as promessas mentirosas dos políticos (prefeitos que iriam fazer a praça), o que impera é o poder da nostalgia, mediada por um sabiá que, “escondido na folhagem de uma árvore, emitia, a intervalos, o seu canto, sempre igual e sempre belo” (p.14). E é ouvindo o canto dessa ave que o homem, mergulhado em suas recordações, dali emerge e faz uma declaração de amor à companheira.

Em “O que cada um disse” temos uma narrativa polifônica, em vários blocos, criando uma dramática expectativa sobre o que teria feito um certo sujeito. Num determinado ponto, aparecem os bichos como eloquentes metáforas dos mistérios entranhados nas criaturas racionais: “O ser humano é como uma floresta: você olha de fora, e a floresta é aquela maravilha; mas você entra, e lá dentro você dá com onças, cobras, escorpiões” (p.21). Nessa mesma narrativa há o comportamento irracional de um Tidião que pegara uma espingarda e deu tiro em tudo que era bicho: “Vaca, porco, o cavalo, o cachorro. Nem o gato escapou. Nem o galo. Ele deu tiro até em passarinho na árvore”(p.24).

Uma das melhores histórias do livro é “Céu estrelado”: o homem regressa de carro para sua cidade, numa noite de passagem de ano, e cruza na estrada com um tatu, e o trata respeitosamente em seus pensamentos. (Em Tremor de terra, um dos personagens acaba se transformando em tatu.) Essa cordialidade com o bicho contrasta com o ambiente de sua casa, repleta de gente e dominada por uma mulher estúpida com quem ele conversa pelo celular. O desfecho desse conto, com direito ao aroma dos eucaliptos, é digno das grandes narrativas de Luiz Vilela sobre as angústias do bicho homem.

Em “Todos os anjos”, o mais lúdico dos textos, o pai conversa com seu filho que vem de uma aula de catecismo. A história gira sobre a existência dos anjos, que se assemelham a pássaros e a cobras voadoras. E a certa altura do diálogo o pai fala que “a minhoca só falava na língua delas: o minhoquês” (p.42). Como o menino estava com a cabeça cheia das informações da freira que lhe dava aulas, é irresistível a associação entre esse anelídeo e as ideias que botavam na cabeça das crianças...

Crueldade
No mais longo dos contos, “Bem”, em que o narrador ocupa dois planos da narração (o momento da enunciação e o tempo em que fizera amizade com um limpador de privadas, o “Bem” do título), temos uma espécie de ensaio sobre a crueldade humana: o narrador acaba tendo prazer de ouvir pelo telefone todas as desgraças que abatem sobre o pobre diabo que só atraía males, pois afinal os males vêm para o bem. Muitos trocadilhos perpassam pela narrativa em que o autor explora mais uma vez a catarse através da conversa telefônica, como já fizera em “Tarde da noite”. Num determinado momento, o gato que quebra o vaso da esposa de Bem e o cachorro que adoece e morre marcam e prenunciam mais desgraças que cercam o personagem.

O passado retorna no conto “Quando fiz sete anos”, em que o narrador recorda-se da bússola estragada que ganhara do avô. Num instante de intensa alegria, surge o bicho expresso em metáfora: “Eu agradeci e, doido para abrir o embrulho, fui para casa, a três quarteirões dali, voando como um alegre pássaro da manhã” (p.80).

Na mais mórbida das narrativas, “Corpos”, o autor expõe traços negativos da curiosidade humana: duas pessoas vasculham um site procurando detalhes dos corpos estraçalhados num desastre aéreo. Os bichos aparecem em dois planos: num dito popular: “abra um corpo e verás teu corpo, dizia minha avó” (p.85); e nos bichos da floresta em que o avião caíra: um passarinho que estava “todo tranquilo” (p.87) num galho, indiferente à tragédia, e nos supostos bichos que poderiam ter arrastado corpos das vítimas (p.89).

O caráter trágico e irônico retorna em “Noite feliz”, um dos contos mais pungentes, sobre uma mulher solitária numa noite de Natal. O autor é extremamente econômico em suas informações, deixando ao leitor a construção mais completa do quadro que se verá. Mas um gato aparece nas lembranças da protagonista, o macio e quentinho felino que se chamava Pretinho, nome que, metonimicamente, remete ao desfecho inesperado.

Em “Mataram o rapaz do posto” há o mal-entendido sobre a morte do homem citado no título. O bicho que aparece na história é um gambá. Mas o grande fedor está implícito (novamente) na crueldade humana.

No conto “Você verá”, que fecha o livro, você, leitor, não verá bicho algum. O protagonista encontra-se, de madrugada, num bar da rodoviária de Brasília, nos primeiros tempos da nova capital. O dono do barzinho é esperançoso em relação à cidade construída pelo “maior dos mineiros” (p.109). Crê o homem que este é “um país onde todos terão oportunidade, onde ninguém mais passará fome, ninguém mais precisará pedir esmola nas ruas” (p.108). O narrador se encontrava empoleirado num banquinho (p.105). Empoleirado, como uma ave, talvez como um bem-te-vi. E é a sensação que temos ao fechar o livro, bem-te-vi, com todos bens e males do bicho humano neste mundo tão pequeno...

Caio Junqueira Maciel é escritor.


 (editora record/reprodução)

Você verá
• De Luiz Vilela
• Editora Record
• 128 páginas, R$ 30

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