sábado, 7 de dezembro de 2013

Uma mulher de verdade [Inezita Barroso] - Ângela Faria

A cantora paulista Inezita Barroso tem sua vida corajosa retratada por Arley Pereira. Biografia revela uma artista com dom para a pesquisa e a defesa da cultura brasileira


Ângela Faria
Estado de Minas: 07/12/2013



A jovem morena deixava o público seduzido. Nem o galã italiano Vittorio Gassman escapou de seus encantos (O Cruzeiro/Arquivo EM/D.A Press)
A jovem morena deixava o público seduzido. Nem o galã italiano Vittorio Gassman escapou de seus encantos

Mário de Andrade de saias”, Inezita Barroso é a estrela rainha da música sertaneja brasileira. Perto dela, Paula Fernandes, Maria Cecília e Roberta Miranda são satélites. A conta bancária pode até ser maior, mas nenhuma dessas “majestades sabiás” é páreo para Ignez Magdalena Aranha de Lima, de 88 anos – apresentadora do programa Viola, minha viola (TV Cultura) há 33. Essa “caipira” filha de quatrocentões paulistas é uma das mulheres mais valentes do Brasil.

No livro Inezita Barroso – A história de uma brasileira (Editora 34), o jornalista Arley Pereira (1935-2007) revela uma desbravadora, que lutou por suas convicções muito antes de o feminismo virar moda. Conta ele que já nos anos 1920 a menininha bem-nascida preferia comandar a turma de garotos ao mundo cor-de-rosa dos laços de fita. Na fazenda, a jovem sinhazinha preferia a companhia da caipirada aos saraus de piano. Só passava as férias no meio dos peões.

Aos 7 anos, Ignezinha – ainda com g – ganhou o primeiro violão. Mas ela gostava mesmo era de viola – coisa proibida para mulheres. Nas suas festas de aniversário, o presente era ouvir o compositor Raul Torres. Amigo de seu pai, Bico Doce vinha tocar para ela. Bom ouvido, a aniversariante aprendia com o mestre as sutilezas da arte caipira.

Bela morena, a adolescente tomava chá das cinco no elegante Mappin, dedicava-se à natação (era aluna de Paul, pai da campeã Maria Lenk). No tradicional Clube Paulistano, conheceu o marido, Adolfo Cabral Barroso. Graças a ele, enturmou-se com estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Ficou amiga dos atores Paulo Autran e Renato Consorte. Cunhada de locutor da Rádio Tupi, a universitária Inezita, estudante de biblioteconomia, juntou-se para sempre às rodas boêmias e artísticas.

A senhora Adolfo Barroso participava de recitais e peças do Teatro Brasileiro de Comédia, o famoso TBC, cantou para o astro Vittorio Gassman (ele quis levá-la para a Europa), tornou-se amiga da fadista Amália Rodrigues. A estreia no rádio veio em 1950. A moça sorridente fez shows na famosa boate carioca Vogue, mas se tornou artista profissional apenas em 1951, em recital em Pernambuco, para onde viajou com o marido. O convite veio do maestro Capiba, o famoso autor de frevos.

A partir da temporada na Rádio Clube do Recife, a bela morena não parou de deslumbrar plateias. Apresentava-se nos microfones da Record e da Tupi, foi estrela da nascente TV, virou estrela de cinema e levou o Troféu Saci por seu papel no filme Mulher de verdade. Era artista, profissão malfalada, mas jamais lhe botaram cabresto.

De lá para cá, foram mais de 80 discos. Um deles completou seis décadas este ano e dá a medida do quilate de Inezita. De um lado, ela gravou Moda da pinga, aquele clássico do “co’a marvada pinga é que eu me atrapaio”; do outro estava a estreante Ronda, ícone da dor de cotovelo composto por Paulo Vanzolini. Nos anos 1950, a moça fina cantava na noite, criava a filha e se sustentava sem ligar para quem olhava torto para “a desquitada”. Inezita não limitava seu repertório à música de raiz. Aracy de Almeida não gostou de ver a “grã-fininha mascarada”, de quem se tornaria amiga, exibindo a bela voz em clássicos de Noel Rosa.

Microfones e estúdios eram pouco para Inezita: em 1957, ela se entusiasmou pelo jipe Willys. A bordo de um deles, com dois “copilotos” que não sabiam guiar, a estrela dirigiu por mais de seis mil quilômetros entre São Paulo e o Nordeste. Tal qual Mário de Andrade, recolheu melodias, letras, versos, instrumentos musicais e tesouros da cultura popular. Folclorista diplomada na estrada, nunca mais abandonou a lida. Pesquisou a cultura rural, apurou ainda mais o ouvido para o Brasil profundo.

Nos anos 1960, Inezita sentiu o golpe, mas não se deixou abater quando os meios de comunicação se tornaram templo do pop e da cultura jovem. A viola foi desbancada sem dó pela guitarra elétrica. Contratos à míngua, ela chegou a queimar seu querido violão amarelo na churrasqueira de casa. Começou a dar aulas de música – viu-se obrigada a ensinar iê-iê-iês de Roberto –, abriu um restaurante no Brooklin, chamado Casa de Inezita, onde servia comida caseira e cantava para a freguesia. Foi à luta, mas nunca abandonou a sua música.

Em 1980, a cantora passou a comandar uma trincheira da cultura popular brasileira: o programa Viola, minha viola, transmitido pela TV Cultura. Ali, sertanejo universitário e dupla famosa e moderninha não tinham vez. Astros são gente do quilate de Pena Branca e Xavantinho (então desconhecidos, ganharam de Inezita estímulo para prosseguir – e estourar) e da genial Helena Meirelles. A violeira chegou à televisão graças a Inezita – e muito antes de se tornar famosa nas páginas da americana Guitar player, bíblia dos instrumentistas.

No rádio, a apresentadora comandou vários programas dedicados à cultura popular. Almir Sater, Sérgio Reis, Renato Teixeira, Roberto Correia (com quem ela gravou dois discos) e Tonico e Tinoco são alguns de seus companheiros de microfone. Patativa do Assaré deu a Inezita sua última entrevista.

Bibliotecária, ela guarda um verdadeiro museu de folclore em dois imóveis. Aos 55 anos, virou professora do Conservatório de Pouso Alegre, no Sul de Minas, ensinando coisas do Brasil à garotada. Em vez de provas caretas, desafiou: vamos fazer desfile de carro de boi? A moçada teve de se virar, mas aqueles carrões de madeira ressurgiram desfilando pelas ruas e arrancando lágrimas dos antigos. Em Mogi das Cruzes (SP), onde ela ensinou na faculdade, estudantes se desdobraram para reproduzir uma festa de São João como as de antigamente. Com mastro, cartomante e até cigano...

Aos 88 anos, a mestra continua na lida. Dê uma espiada em www.inezitabarroso.com.br: lá está o contato para shows – são quatro números de telefone! Entretanto, quem quiser assistir in loco à gravação de Viola, minha viola vai ter de esperar. A função deste ano já se encerrou, mas em fevereiro começa a temporada 2014. Inezita – a nossa Hebe caipira – estará lá, firme e forte. Com aquele sorrisão do tamanho do Brasil.

INEZITA BARROSO – A história de uma brasileira
. De Arley Pereira
. Editora 34
. 207 páginas, R$ 44

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