Arlindo Carlos Pimenta
Estado de Minas: 08/02/2014
A torcida atleticana no Marrocos viu fugir o sonho com a crise de liderança e coesão do grupo |
A psicanálise, criada por Freud, tem por base o conceito de inconsciente como sistema de funcionamento mental que influi, queiramos ou não, em todos os atos da vida. Sendo assim, esse ramo do saber humano se divide grosso modo em psicanálise em intenção, a clínica psicanalítica por excelência, e a psicanálise em extensão, que contribui com sua visão para a compreensão dos diversos acontecimentos da vida cotidiana em toda a sua amplitude.
Sendo eu atleticano desde 1947, e como tal carregando na bandeira preta e branca, como bem assinala Roberto Drummond, os odores de suor, lágrimas, perfume da mulher amada, mas nunca o de naftalina, e como psicanalista, me senti no direito e, por que não, no dever de apresentar meu ponto de vista do que foi vivido pela minha família e por mim em Marrakesh.
Dizem que o brasileiro, e em particular o torcedor, tem memória curta e logo esquecerá as decepções e conquistas. Não sei se é bem assim. Nestes 66 anos em que acompanho nosso galo carijó, dois traumas maiores se tornaram muito difíceis de elaborar. Refiro-me primeiramente à final de 1977 contra o São Paulo, naquela tarde chuvosa, quando, emudecido, assisti ao choro de meus garotões. A outra, agora no Marrocos, com meus garotões já crescidos, onde junto com minha mulher e nora vivenciamos o trauma de Marrakesh.
Por que trauma? O que é um trauma para a psicanálise? Para não me alongar muito, podemos dizer que o trauma é uma vivência psíquica, que invade a mente e a desorganiza e paralisa. De imediato não se consegue elaborar aquela vivência, significá-la e integrá-la. O nível de angústia é altíssimo e invasivo. O que acontece juntamente com a perplexidade é a repetição incessante da vivência traumática, que teima em se manter em sua mente apesar dos esforços conscientes que fazemos para nos afastarmos delas.
Isso se dá, segundo Freud, por dois fatores em especial, a saber: ou a vivência é muito intensa, ou estamos despreparados para ela, ou os dois fatores conjugados. Marrakesh foi antes de tudo um grande trauma. Quem se desloca para aquela distância enfrenta as vicissitudes de chegar àquele estádio. Anda três quilômetros a pé, praticamente no escuro, em meio à multidão ululante. Não esperava nunca o acontecido.
Onde estava aquele time da Libertadores, raçudo, confiante, entusiasmado, que respondia em campo ao “eu acredito” das arquibancadas? Algo sério aconteceu. Para um torcedor que recebe informações às vezes truncadas e parciais fica difícil entender. Mas, à medida que o impacto foi se distanciando, pude me lembrar da Psicologia das massas, de Freud, texto no qual ele elabora a teoria do pânico. Para Freud, a estabilização de um grupo se deve a dois tipos de ligação emocional. O primeiro tipo de ligação, chamado ligação vertical, é estabelecido entre os componentes do grupo com um lugar do ideal, geralmente ocupado pelo líder ou líderes. Em razão dessa ligação vertical em comum, é estabelecida uma ligação horizontal entre os membros desse grupo, ligação que dá coesão e estabilidade ao grupo.
O pânico se daria, segundo Freud, quando fica vago o lugar do ideal, da liderança. A ligação vertical não se sustenta e, como consequência, a ligação horizontal se desfaz. Desaparece o grupo como tal, e o pânico leva ao “cada um por si”. Freud, nesse texto, lembra o evento bíblico em que os exércitos assírios comandados pelo general Holofernes dizimavam o exército de Israel. Judite, bela e sedutora, passa pelo exército assírio e vai até a tenda de Holofernes, com o qual passa uma noite de sexo e vinho. Ao amanhecer, tendo o general adormecido, extenuado, Judite corta-lhe a cabeça, sai da tenda e mostra-a aos exércitos, que em pânico se dispersam.
Perplexidade O que assistimos em Marrakesh foi algo aterrador. À algazarra marroquina, ao final da partida, víamos estampada a perplexidade emudecida dos milhares de atleticanos que se entreolhavam estarrecidos. Certamente um pesadelo. Como explicar? De volta ao hotel, mais seis quilômetros aturdidos aos gritos marroquinos dos quais só entendíamos: mineiro, mineiro. E como não entendo árabe, graças a Deus, ficava por isso.
No dia seguinte ao conversar com alguns árbitros da Fifa que se hospedavam no mesmo hotel, tentei diminuir a dor traumática alegando que não fora pênalti e que o Marrocos tão vizinho da Espanha poderia ter influenciado o árbitro. Argumento e contra-argumentos entre esprit de corps e paixão de torcedor, o árbitro encerrou a conversa dizendo: “Meu amigo, o Atlético Mineiro perdeu de si próprio”. Emudeci e tive de concordar. Infelizmente é verdade.
Mas por quê? Os rumores da imprensa davam conta de que Cuca não era mais efetivamente o treinador do Galo. Aquele Cuca do “Yes we CAM” desapareceu. O lugar vago certamente levou o elenco carijó ao pânico e à desestruturação. É como se Judite em chinês mostrasse a cabeça decepada de Cuca aos jogadores. Salto alto diziam alguns, mais provavelmente o pânico que se apossou do grupo.
Mas pelo resultado podemos deduzir que deve ter faltado habilidade naquele momento. Não era hora de desestabilizar a equipe. Falta de tato ou conhecimento mínimo de psicologia (psicanálise)? Ganância do treinador? Só podemos neste momento exercer essa função importante do ser humano, que é o fantasiar. O presidente Kalil não compareceu à cerimônia de entrega de medalhas. Por quê? Mais um sinal de vácuo?
Certamente as questões financeiras, os centros de treinamento, a parte administrativa são extremamente importantes na administração de um clube. Mas para usar o jargão do futebol uma “pixotada” psicológica ou o desconhecimento da psicologia dos grupos, a que o Departamento Médico deveria ser sensível, além de entender evidentemente de ossos, músculos e tendões. Mas o ser humano é muito mais que isso.
E o preço é alto. Sei que a questão é complexa. Este que abordamos é apenas um deles. Nem por isso menos importante. E nele Freud explica.
Arlindo Carlos Pimenta é psiquiatra e psicanalista.
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