Carolina Cotta
Estado de Minas: 23/03/2014
A administração de talidomida a partir de um implante polimérico biodegradável reduziu em até 47% o volume de tumores de mama. A pesquisa realizada na Fundação Ezequiel Dias (Funed), em Belo Horizonte, foi feita em modelo animal, no caso camundongos, mas aponta para um novo tratamento de pacientes com câncer que se beneficiam da talidomida. O polêmico medicamento tem efeitos biológicos importantes, como a inibição da angiogênese, formação de novos vasos sanguíneos que determinam o avanço dos tumores. Nos últimos anos, essa capacidade do medicamento tem tornado crescente o interesse na sua utilização como agente antitumoral. Seus efeitos adversos, portanto, são um entrave à disseminação de sua aplicação.
Nesse ponto está a contribuição da pesquisa, realizada em parceria com o Programa de Pós-Graduação em Ciências Farmacêuticas da Faculdade de Farmácia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O pesquisador da Funed Bruno Pereira elaborou e comprovou a eficácia de uma nova formulação farmacêutica para a veiculação da talidomida. Segundo ele, os implantes compostos por polímeros biodegradáveis são promissores sistemas de liberação de fármacos, não necessitando remoção e promovendo uma liberação prolongada e localizada. Avaliadas as características físico-químicas, a farmacocinética e os efeitos adversos da talidomida, o estudo aponta para a melhoria da resposta terapêutica do medicamento quando administrado, para o tratamento de câncer, na forma de implante polimérico.
"Os implantes biodegradáveis representam uma forma farmacêutica com potencial no tratamento de tumores uma vez que promovem a liberação controlada do fármaco, permitindo a manutenção de níveis terapêuticos eficazes por um período de tempo prolongado. Também permitem a liberação direta no local de ação, evitando os efeitos adversos provocados quando os mesmos são administrados pela via sistêmica e protegendo os compostos da inativação antes de atingirem o seu local de ação", explica Pereira, doutor em ciências farmacêuticas. Por serem biodegradáveis, esses sistemas não precisam ser removidos cirurgicamente após a liberação completa do fármaco, ao contrário dos implantes poliméricos de ação contraceptiva já disponíveis no mercado.
Os implantes usados no estudo medem 1mm por 4mm e têm formato de bastão. Foram feitas três opções: com 1mg, 2mg ou 3mg de talidomida. Os bastões foram implantados próximos aos tumores sólidos de Ehrlich, um tipo de tumor de mama, em camundongos. Técnicas próprias permitiram avaliar tanto a morfologia e as dimensões dos implantes quanto a interação do fármaco com o polímero. Segundo Pereira, os implantes, com o passar do tempo, vão liberando a talidomida e assim mudam de formato. Os bastões foram produzidos de formas diferentes e essas condições de preparo também geraram alterações nas características do implante.
Considerando a atividade antiangiogênica da talidomida, um dos mecanismos mais interessantes do fármaco no que se refere ao combate ao câncer, foi preciso avaliar sua atuação por diferentes métodos. Segundo Pereira, o fato dessa ação ser governada por fatores diversos e da resposta da talidomida variar, como mostraram estudos anteriores, o efeito foi avaliado em mais de um modelo de estudo de inibição de angiogênese, buscando demonstrar que a inclusão da talidomida nos implantes não impede que essa atinja essas características antiangiogênicas. “A estrutura da talidomida é mantida e a mesma é liberada para os meios biológicos testados em concentração suficiente para atingir o efeito”, explica.
NECESSIDADE DE OUTROS TESTES Os dispositivos implantáveis desenvolvidos demonstraram eficácia na inibição do crescimento do tumor sólido Ehrlich. Os níveis terapêuticos de talidomida obtidos pela liberação a partir do implante alteraram o ciclo de vida de células desse tipo de tumor. “Os resultados favoráveis obtidos demonstraram que os implantes poliméricos biodegradáveis contendo talidomida têm potencial para serem aplicados como sistemas de liberação para o tratamento localizado do câncer, com manutenção de forma prolongada das concentrações de fármaco”, defende o pesquisador. O próximo passa é estudar a viabilidade dos implantes para o tratamento de tumores, uma vez que podem ultrapassar desvantagens das terapias convencionais usadas para combater o câncer.
É preciso também avaliar a distribuição sistêmica a partir de diversos locais de implantação. Além disso, o sistema desenvolvido permite a associação de mais de um fármaco, o que certamente potencializaria os efeitos no tratamento do câncer. "As perspectivas de aplicação em humanos devem ser avaliadas a partir da aplicação do sistema a outros modelos, incluindo outras espécies e locais de aplicação para determinar de forma mais ampla o perfil de toxicidade e eficácia. Os próximos passos devem ser a aplicação a outros modelos de câncer de mama em camundongos e a avaliação de farmacocinética, ou seja, de como o medicamento se comporta no organismo", acrescenta Bruno Pereira.
COMO SÃO FEITOS OS IMPLANTES
» Os sistemas de liberação de fármacos têm como objetivo a manutenção contínua do nível do fármaco dentro da faixa terapêutica por um longo período, a redução de efeitos adversos devido à liberação direcionada, a possibilidade de diminuição da quantidade de fármaco necessário e a diminuição da frequência e número de doses o levam a uma maior adesão do paciente ao tratamento.
» Atualmente, existe no mercado um implante de PLGA contendo gosserrelina para o tratamento de câncer de próstata e mama. O medicamento é aplicado na via subcutânea de forma simplificada por meio do uso de uma seringa apropriada. Por ser biodegradável, não necessita procedimento cirúrgico para remoção do implante após a liberação do fármaco.
» Há também implantes não biodegradáveis no mercado. Nesses, a matriz requer um tempo muito grande para ser degradada e por isso é necessário a sua remoção cirúrgica após o tratamento. Um exemplo são os implantes contraceptivos, já usados por cerca de 10 milhões de mulheres ao redor do mundo.
Uma droga temida, mas de grande interesse
Apesar do trágico episódio que marcou sua retirada de circulação em 1961, quando esteve associada a malformações congênitas, a talidomida é hoje um fármaco de grande interesse para a comunidade científica internacional. Além de suas atividades anti-inflamatórias e imunomoduladoras, a descoberta de seu efeito antiangiogênico impulsionou a proposta de adotá-la no tratamento de diversas patologias, entre elas o câncer. Sintetizada pela primeira vez em 1954, como um antiepilético, e efetivamente introduzida em 1956 como sedativo e antiemético, capaz, portanto, de aliviar problemas relacionados ao enjoo, náuseas e vômitos, a prescrição da talidomida para gestantes tornou-se rotineira.
Na década de 1960, quando já havia se tornado um sedativo popular de venda livre, comercializado em cerca de 20 países, inclusive no Brasil, foi retirada do mercado após relacionarem seu uso aos defeitos nos membros superiores de recém-nascidos de mães que adotaram o remédio, e também a casos de neuropatia periférica, doença que atinge os nervos e pode ser fatal. Três anos depois de sair do mercado observou-se um efeito benéfico em pacientes com hanseníase, o que a trouxe de volta às farmácias. Nos anos 2000, foram relatadas, pela primeira vez, suas propriedades antiangiogênicas, anti-inflamatórias e imunomoduladoras. Desde 2006, o Food and Drug Administration (FDA), órgão americano de controle de medicamentos, equivalente à nossa Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), autorizou o uso da talidomida no tratamento de pacientes com mieloma múltiplo, tipo de tumor primário da medula óssea. No Brasil, a droga é, inclusive, fornecida pelo Ministério da Saúde para esse fim, e também para hanseníase e lúpus.
Segundo o oncologista Alexandre Chiari, da Oncomed-BH, a talidomida trouxe um ganho de sobrevida estatística e clinicamente significativo para pacientes com mieloma múltiplo. Isso porque a droga, em função dessa propriedade antiangiogênica, impede que novos vasos sanguíneos sejam constituídos. “A formação vascular é concomitante ao crescimento de um tumor. Como todo tecido, ele precisa de nutrientes e oxigênio para crescer e consegue isso por meio de uma vascularização própria. A talidomida age exatamente inibindo a formação dessa nova vascularização, consequentemente, diminuindo o tumor”, explica o especialista que como outros oncologistas prescreve o medicamento aos seus pacientes.
O grande problema é que a talidomida é um medicamento extremamente tóxico, causando, principalmente, neuropatia periférica, constipação intestinal e eventos tromboembólicos. “Esses efeitos são limitantes do seu uso. O médico que prescreve o medicamento, contudo, tem que estar atento. Há casos que precisamos diminuir a dose ou até suspender a talidomida por causa dos efeitos”, alerta Chiari. Um rígido controle da natalidade é premissa para a autorização de sua adoção em tratamentos, o que inclui ações como teste de gravidez negativo em mulheres férteis, uso de duas formas eficazes de contracepção e uso de preservativos.
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