André di Bernardi Batista Mendes
Estado de Minas: 03/05/2014
O romancista português Valter Hugo Mãe traça em prosa poética o destino de uma menina islandesa |
A Cosac Naify acaba de lançar A desumanização, quarto livro do poeta e escritor Valter Hugo Mãe publicado pela editora. A história se passa na paisagem inóspita dos fiordes islandeses e é narrada por uma menina de 11 anos, Halla, que conta, de maneira muito especial, o que lhe resta depois da morte da irmã gêmea. Valter, pela primeira vez, ultrapassa na sua narrativa as fronteiras portuguesas. Já de cara uma porrada, pois o leitor se depara com o enterro da criança Sigridur. Cabe neste ambiente, nesta trilha nada convencional, a paranoia que devasta uma família, a ruptura da infância, o contato com a dor e o consequente amadurecimento precoce. Perder gera consequências. Para terminar o romance, o escritor passou um bom tempo, entre idas e vindas, naquele país, a Islândia, um lugar mais estrangeiro que tudo.
Encarar um Valter Hugo Mãe não é tarefa das mais simples. É preciso fôlego e coragem para enfrentar um turbilhão de sentidos e sentimentos. A poesia, a prosa de Valter caminha no sentido da esperança, com toda carga, negativa (pois vivemos num mundo desfeito para utopias) e positiva (esperança é sinônimo, signo de estrada, ponte que religa céu e homem).
Tanta sensibilidade, tanta lucidez nos fazem perceber o breu, as broncas do mundo. As ferramentas, a broca, a maturidade artística de Valter Hugo confirmam o quase óbvio, que falta muito pouco para chegarmos ao desumano que existe, como pedra, como uma besta/fera, em todos nós. Esta é uma das chaves, esta é uma das funções mais estranhas do escritor, captar, através dos dilemas humanos, dos cheiros, das cores, das árvores, do frio, do gelo, do sol e da lua, o que nos escapa, o que está ali, mas não se mostra.
Ler Valter Hugo é ficar, é permanecer muito perto do sonho, muito dentro de neblinas. Seguindo um rumo próprio, o que é constante em suas obras, o livro alcança profundidades. Valter Hugo provoca sustos, prioriza o estranhamento, alcança sombras e abre portas para os leitores, portais que revelam lugares perigosos que existem no de dentro, no segredo de todas as coisas. Valter Hugo apenas provoca, mas não atiça, não afirma firmes certezas. Esse tipo de estilo, esse tipo de conduta, esse tipo único de literatura surge do inaudito.
Valter Hugo, nos seus livros, com suas palavras, encontra brechas para se mostrar como veio ao mundo e o que fica desta surpresa remete aos trâmites da alma, remete ao descampado de um peito que se transforma por meio do verbo e principalmente através da dura poesia. Surge um rosto feito de fragilidades, feito de ternuras, comprimido pelos desacertos, pelas misérias, e, claro, pelo mistério infinito. Valter Hugo revela para o mundo apenas um rosto humano. O corpo, assim como a vida, é cheio de urgências.
A poesia de A desumanização tem a força de um tiro, com a delicadeza de um suspiro: “Foram dizer-me que a plantavam. Havia de nascer outra vez, igual a uma semente atirada àquele bocado muito guardado de terra. A morte das crianças é assim, disse a minha mãe”. E esse é apenas o começo do livro.
Valter Hugo tem um relacionamento íntimo com a linguagem, e os indícios deixados pela narradora, a pequena Halla, fazem o leitor embarcar num processo de vertigens. O tempo todo, como pode, estávamos ali, naquele livro, e não sabíamos. É preciso alegria, tato e muita coragem para encontrar, para reinventar um espelho tão especial.
O escritor, o poeta inventou algumas cores para o seu mundo e ele, como todo artista, cheio de vulnerabilidades, abusa desta invenção feita de nuances e transparências. Não há maneira melhor de sermos, como diz, em certo trecho, o pai de Halla: “A humanidade começa no outro”. Valter apresenta suas palavras, mas, muito mais que isso, estende suas mãos para este outro, ainda que existam demônios dos infernos à espreita.
Raiva Como descrever o fogo, se ele apenas sabe queimar? O que dizer de um livro tão especial, entre tantos, deste fabuloso escritor português? Em A desumanização, Valter Hugo também escancara uma grande raiva diante dos desmandos políticos e sociais de seu tempo. O escritor dialoga com o abstrato e busca entender o imenso impossível. O problema é que tudo poderia e – deveria ser – bem diferente. Valter Hugo empresta intensidades a cada coisa, a cada pedra, a cada cisco que, com isso, ganha aura, mágica, sentido e importância. Caymmi soube do mar, Fernando Pessoa e Valter Hugo sabem muito de nós. Todos eles preferiram, é bom lembrar, a gentileza, pois tornaram-se excelentes guias.
A Islândia também existe dentro de nós. Portugal, Brasil, Congo e Dinamarca não são apenas palavras, mas elos de uma corrente feita de importâncias, elos de uma corrente feita da mais pura matéria humana. Ao nascer, conhecemos imediatamente a decadência, um sopro de ventos. Não há correção possível, mas temos um périplo pela frente. Muitos conhecerão de perto, nesta nossa pequena aventura, a música, a poesia e a prosa. Ainda não conseguimos prever que tipo de abismos ou rosas marcarão os nossos próximos passos. É triste, de uma melancolia única, de sabermos dessa forma, desse jeito cru.
Não são os prêmios, não é sequer a literatura que glorifica uma existência. Valter Hugo caminha firme e confia plenamente no sentido de suas claridades, ele confia plenamente nas suas luzes, cada vez mais belas, cada vez maiores. Conhecê-lo é sentir na pele um pouco deste sol que despenca. O muito estranho é que tudo isso indica que, de alguma forma, tudo pode ser simplesmente necessário.
Valter Hugo, nos seus romances, com a sua poesia que transcende limites, insiste em apontar. Vai demorar, mas um dia, para lá do fim do mundo, quem sabe, saberemos, se Deus assim quiser, para não mais caber nos livros sobras de morte e descalabros.
Valter Hugo escreve como quem respeita o silêncio dos carvalhos, o mistério das águas, a força que desce, que reside não se sabe onde (nos fiordes, no Tejo, na Espanha, sim, na Espanha, ou no pequeno coração de Halla?), que se mantém como algo que insiste, chama, pavio, apesar de tudo. Nascemos de cusparadas. A morte é um escárnio feito de espinhos absurdos. Como Deus, essa superfície lisa, infinita, de um muro em linha reta.
Eis o nosso fado. Valter Hugo, diante da cólera, diante do ímpeto, diante da voracidade do tempo furioso, coloca uma espécie de raro empecilho feito de leveza e generosidade. Ele propõe uma hipótese utópica feita justamente dessa nossa incompletude. Através dela, e por causa dela, seremos. É preciso adornar de flores o nosso teatro, é preciso criar, é preciso inventar a nossa própria ficção; é preciso sermos. As ações, os fracassos, as alegrias, os encontros, a literatura só é boa e só funciona se nos ajuda neste sentido. Valter Hugo tenta aceitar a morte ao dignificar a vida.
A DESUMANIZAÇÃO
• De Valter Hugo Mãe
• Cosac Naify
• 160 páginas, R$ 34,90
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