O Globo - 03/05/2014
A ESCRITA DE MEMÓRIAS, COMO EM “MEUS DESACONTECIMENTOS”, FUNCIONA COMO UMA COLA QUE VEM REMENDAR O QUE SE ESFARELAVA
A escrita de Eliane Brum teve vários nascimentos. No primeiro, o parto envolveu dolorosas histórias de família. Antes dela, os pais perderam uma menina. “A morte é um mundo sem palavras. E é curioso que minha primeira lembrança seja a morte. Como se eu tivesse nascido morta”. Só pela perda de Maninha, ela imagina, a mãe decidiu engravidar de novo — e ela, Eliane, teve a chance de nascer. “Se alguém espiasse meus pensamentos, saberia que eu sentia um alívio culpado pela morte da outra. Intuía que, se ela não tivesse morrido, eu não teria nascido”. As primeiras palavras gaguejadas pela menina surgiram, assim, dessa morte anterior. Experiência fundadora que Eliane Brum, hoje escritora consagrada, relata no comovente “Meus desacontecimentos — A história da minha vida com as palavras” (LeYa).
No segundo nascimento, aos três ou quatro anos de idade, ela apanhou pela única vez do pai, que não suportou que a menina destruísse, com uma tesoura, o rascunho de um discurso. Os pedaços não puderam ser colados e nem lidos. Os gritos da garota foram ouvidos de longe. “Talvez esse tenha sido o momento em que me tornei escritora”. A escrita nascendo das palavras despedaçadas do outro. Aos poucos, aprendeu que “nossa vida é nossa primeira ficção”. Lembranças não são fatos, mas restos retrabalhados. A memória não é o que aconteceu, mas algo que se faz do que aconteceu.
No terceiro nascimento, era um dia vazio e desesperador. “Foi num domingo que eu escrevi pela primeira vez para não morrer”. A tristeza a empurrava para o vidro da janela. Para resistir ao impulso, pegou caneta e papel e começou a rabiscar um poema. “Era uma poesia ruim, rebuscada como os livros que eu andava lendo, mas meu pai gostou”. Até ali, percebia o mundo “como uma noite sem fim nem começo”. Mal podia se acomodar no próprio corpo, sempre devastado por vírus, bactérias e reações alérgicas. Ao arriscar- se na poesia, Eliane encontrou, porém, um segundo corpo. “A palavra escrita me encaixou em um corpo onde eu podia viver. O corpo-letra”. A escritora nasceu outra vez.
A palavra escrita lhe deu a possibilidade de transcender a realidade, encontrando um refúgio no qual ela pode se fortalecer. Esse segundo corpo, de letras, é um corpo indestrutível. “Vivo tudo no corpo. Às vezes me pergunto o que aconteceria comigo se não existisse a palavra escrita. Eu respondo: teria me assassinado”. Logo depois ressalva: “É uma resposta dramática, e eu sou dramática”. Nada que se escreve pode ser apagado. Esse é o grande risco que a palavra envolve: ela não se revoga, mesmo quando é negada fica como cicatriz. Fica uma marca, que designa uma existência. “Toda história contada é um corpo que pode existir. É uma apropriação de si pela letra-marca de sua passagem pelo mundo”. Foram muitos os momentos de nascimento da palavra, como um estojo protetor em que a existência se aloja.
Até os cinco anos de idade viveu em um apartamento muito escuro, em Ijuí, noroeste do Rio Grande do Sul, um lar que detestava. “Tudo para mim era muito mortífero, tudo era quase morrer”. Ainda sem o abrigo das palavras, e com a ausência da irmã que partiu precocemente, a infância se tornou uma experiência letal. Na maturidade, aprendeu que a escrita se encarna no corpo físico. A cada novo livro, um corpo antigo precisa morrer para que outro, com novas inscrições e novas marcas, possa surgir. A escrita é sempre uma tentativa de remendar aquilo que não tem conserto. Quando nasceu, a lenda familiar conta que o pai, cheio de fúria, quebrou um vaso do hospital. “Por muitos anos, fui esse vaso quebrado, até me surpreender um dia pensando em mim sem se como cacos de mim”. A escrita de memórias, como agora em “Meus desacontecimentos”, funciona como uma cola que vem remendar aquilo que se esfarelava.
A morte precoce da irmã lhe deu uma biografia — uma bio que lhe permitiu nascer. “Eu agora lhe dou uma grafia. Aqui consumamos nossa fusão, mas também a separação definitiva”. Além de uma espécie de renascimento da irmã morta, seu novo livro é uma afirmação da existência não só da escritora, mas também da mulher. Pequena, ouvia da avó, com muito espanto, as histórias de Pedro Malasartes, “esse matuto cheio de lábia de um Brasil ingênuo, mas também brutal”. Ao fim dos relatos, afirmando ter esquecido o que ouviu, mentindo, pedia que a avó contasse outra vez. A repetição era uma espécie de alimento que a conservava viva. A avó gostava de contar, ainda, supostas histórias de seus antepassados. “Não sei o quanto é verdade, o quanto é lenda. Não acho que faça alguma diferença para aquela velhinha em forma de bibelô”. Mais uma vez: é através da ficção — da mentira — que a realidade toma corpo e ganha o status de verdade. Verdade, portanto, que carrega a marca original da invenção.
A palavra escrita é potente, mas é perigosa. “As cartas de amor de minha avó provam que não há reparação para a palavra escrita”. Os erros, marcados a sangue no corpo da história, não se corrigem. Eliane pensa aqui em sua própria vida de repórter consagrada. “Eu sempre soube que, se errasse — e algumas vezes errei — não haveria maneira de reparar”. Para vingar o pai, humilhado pelo prefeito da cidade, a pequena Eliane planejou, um dia, o incêndio da prefeitura. Chegou a tentar: os fósforos quebraram em suas mãos. O projeto incendiário fracassou. Perigo das palavras: mesmo quando só pronunciadas, não há vingança que desfaça sua força. Transformou seu furor incendiário em combustível para a carreira jornalística. “Percebo que escrever me salvou de tantas maneiras e também desta”.
Até mesmo a leitura pode ser uma espécie de maldição. Algo que não mais se apaga. Por isso, em suas andanças de repórter, Eliane se comoveu com os homens que lhe disseram: “Sou cego das letras”. Medita: “Era como expressavam, em voz sentida, sua condição de analfabeto”. Se pode ser uma espécie de praga, a palavra nunca deixa de ser uma luz sem a qual só subsistem o antes e o depois da escuridão. Estamos eternamente a gaguejar, nunca chegamos às palavras certas, mas sem elas não existimos.
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