sábado, 3 de maio de 2014

Traidor ou herói? - Pablo Pires Fernandes

Traidor ou herói? 

 
Livro de Luke Harding analisa a trajetória de Edward Snowden, o polêmico agente de informação que revelou ao mundo os bastidores da espionagem americana, inclusive contra nações amigas como o Brasil e a Alemanha 
 
Pablo Pires Fernandes
Estado de Minas: 03/05/2014


Público exibe máscaras com o rosto de Edward Snowden durante encontro sobre globalização realizado em São Paulo, na semana passada     (Nacho Doce/Reuters)
Público exibe máscaras com o rosto de Edward Snowden durante encontro sobre globalização realizado em São Paulo, na semana passada


“Se você quiser manter um segredo, você deve escondê-lo de si mesmo”, diz George Orwell em 1984. Na época de sua publicação, em 1949, o ano de 1984 parecia um futuro distante. Trinta anos depois, aquela sociedade altamente controlada e vigiada, sombria e lúgubre que o autor descreve no romance, com imagens de prédios sem janelas e de um gigantesco Ministério da Verdade que se ocupa de uma vigilância onipresente, parece ter se tornado realidade. E, se até pouco tempo suspeitávamos viver nessa sociedade monitorada, com um Big Brother seguindo cada um de seus passos, agora, graças a um jovem americano, temos a certeza.

As revelações de Edward Snowden a respeito do monitoramento feito pelo governo dos Estados Unidos de seus cidadãos, de governos estrangeiros e empresas o tornaram o homem mais controverso do mundo. Louvado por muitos e odiado por outros tantos, o fato é que o governo do presidente Barack Obama se viu diante de um problema inédito quando esse jovem cidadão americano levou a público a existência de um sistema de controle de informação digno do adjetivo “orwelliano”.

O especialista em informática e segurança de redes trabalhou para a CIA (agência de inteligência dos EUA) e, como terceirizado, prestou serviços para a Agência Nacional de Segurança (NSA, na sigla em inglês). Teve acesso a milhões de arquivos ultrassecretos e compreendeu que a estrutura de vigilância criada pelo governo dos Estados Unidos ultrapassa todas as justificativas legais e éticas dadas por seus políticos. Por causa do ato de Snowden, o público de todo o mundo hoje sabe que praticamente todas as informações que circulam na internet podem ser acessadas pela equipe da NSA, associada ao britânico GCHQ, sigla para Government Communications Headquarters (Quartel-General de Comunicação do Governo).

Sabe-se hoje que um monitor de computador ligado à internet pode fotografar seu usuário sentado diante da tela, e que um iPhone pode se tornar um gravador de voz ou informar a localização de seus portadores. Sabe-se também que e-mails, arquivos de busca, postagens, comentário ou “curtidas” nas redes sociais são acessíveis aos agentes da NSA e do GCHQ. Sabe-se, ainda, que as informações das grandes corporações de informática como Google, Apple, Windows, Facebook, Yahoo e outras empresas podem ser recolhidas pelos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. A imagem de um Big Brother, portanto, parece ter descolado da ficção e mostrado, mais uma vez, que a vida imita a arte.

“Sabemos muito mais hoje do que há um ano”, afirma Luke Harding, autor de Os arquivos Snowden – A história secreta do homem mais procurado do mundo. O livro foi lançado no Brasil pela editora Leya e traz um relato vertiginoso sobre os acontecimentos dos últimos meses, buscando traçar um perfil de Edward Snowden e expor as implicações do que o autor e jornalista do diário britânico The Guardian considera “o maior vazamento de informações secretas da história”.

Falando por telefone da Ucrânia, onde segue os desdobramentos da crise nos Bálcãs, Harding conversou com o Estado de Minas sobre seu livro e a controversa figura do homem que vazou os segredos sobre espionagem eletrônica. O texto, escrito em linguagem de grande reportagem, busca compreender as razões que motivaram o técnico em informática a tomar a decisão mais importante de sua vida e que o transformou em um pária do governo americano. Snowden “cresceu em uma família patriótica e conservadora, republicana e libertária”, afirma. Sem formação universitária, ele tinha apenas o ensino médio completo, mas “tinha habilidades de tecnologia da informação extraordinárias”.

Depois de uma tentativa frustrada de ingressar no Exército – ele quebrou as duas pernas em um treinamento –, Snowden começa a se dedicar a programação de softwares e passa a trabalhar para a CIA, que o levou a Genebra. “Ele definitivamente era alguém de dentro do sistema”, relata Harding, citando o exemplo de que seu herói político é o conservador Ron Paul, que chegou a ser pré-candidato nas primárias do Partido Republicano. Trabalhando para manter seguros os sistemas de comunicação do corpo diplomático americano na Suíça, Snowden tem contato com mais e mais informações e documentos sigilosos, discute com seus chefes e vai, aos poucos, se tornando cético em relação a todo o sistema de vigilância criado pelo governo americano.

Ao viajar para o Japão, para um curso de verão, em 2009, Harding descreve, sua antipatia em relação à administração Obama e o modo com o qual o governo havia se tornado hipócrita e mantinha o controle de tudo o que se faz na internet, ferindo os princípios de liberdade de expressão e privacidade tão caros a Snowden, pois são um dos grandes pilares da Constituição dos Estados Unidos. “Se olharmos em seus chats, vemos que ele se tornou mais e mais cético em relação ao sistema”, explica o autor. Ao fim de sua temporada no Japão, em 2012, “Snowden era um delator em potencial”, conta Harding, acrescentando que “o plano já estava claro”.

Em março de 2012, Snowden começa a trabalhar no Havaí em um dos 13 centros da NSA. Passou 13 meses vivendo discretamente com sua companheira e era descrito como uma pessoa tímida, que se sentia à vontade apenas diante de seu computador. Nesse período, recolheu milhares ou milhões de documentos secretos sem deixar qualquer rastro, afinal, sua especialidade era a segurança de redes e ele se movimentava bem no universo vasto de siglas, códigos e programas.

Depois de decidir expor o gigantesco sistema de monitoramento criado na esteira dos atentados de 11 de setembro de 2001, Snowden optou por fazê-lo a partir de jornalistas confiáveis e que trabalhavam justamente com os abusos do governo americano em relação às liberdades civis. Ele já havia visto exemplos de outros funcionários que tentaram denunciar a corrupção desse sistema por meios legais e internos. Todos foram rechaçados e condenados, e nada foi mudado. Portanto, a escolha da documentarista Laura Poitras e do jornalista Glenn Greenwald foi cuidadosamente pensada. Em 20 de maio de 2013, Snowden desaparece do Havaí e surge em Hong Kong.

Sem narcisismo

Poucos dias depois, Poitras, Greenwald e Ewen MacAskill, um jornalista escocês que trabalha na seção americana do The Guardian, desembarcam em Hong Kong para se encontrar com Snowden. A seção do livro dedicada ao encontro é curiosa, pois revela a postura convicta de Snowden, as precauções dignas de um filme de James Bond e a alucinada corrida dos três interlocutores para compreender onde haviam se metido e o que significava todo aquele misterioso material. “Ele tomou as decisões sobre o quanto e o que revelar”, descreve Harding. “Ele sabia que aquilo destruiria sua vida”. No entanto, a convicção era firme. Segundo o jornalista, no discurso que ele gravou em Hong Kong, diante das três testemunhas, Snowden estava articulado e refletia uma pessoa absolutamente normal. Harding o diferencia de outros delatores, como Julian Assange, do WikiLeaks, que gosta de usar a mídia de maneira um tanto narcísica. Ou de Bradley ou Chelsea Manning, que gravou e cedeu ao WikiLeaks os milhares de telegramas diplomáticos dos EUA e, sem dúvida, vive um problema de definição de sua conturbada personalidade. O então militar americano, depois de sua prisão e condenação, decidiu mudar de sexo. “Era um discurso inteligente e direto”, conta Harding. A única coisa com a qual ele se preocupava, segundo o autor, era se ele seria visto como um traidor da pátria.

A partir desse momento a história começa a se tornar realmente pública. Mesmo para quem acompanha o noticiário a respeito do tema, é curioso ver os bastidores da publicação das informações dos arquivos Snowden. Uma série de reportagens foi publicada no The Guardian e no The Washington Post, fazendo o governo Obama pedir desculpas e criando um enorme embaraço nas relações entre os EUA e outros países (mais tarde, esse conjunto de reportagens deu o Prêmio Pulitzer aos dois veículos). Harding diz que a atitude do governo americano foi correr atrás do prejuízo. Num primeiro momento, a justificativa era de que as informações buscavam apenas alvos terroristas. Mas como justificar que 35 chefes de Estado e 38 embaixadas haviam sido alvo de espionagem? (De acordo com outra lista, publicada posteriormente, o número de chefes de estado sob vigilância seria 122). Encontros de líderes mundiais, agências das Nações Unidas, empresas de vários tipos, nada disso tinha qualquer relação com o terrorismo. “Espionagem sempre existiu, a surpresa foi o fato de os EUA espionarem seus próprios aliados”, relata.

O livro vai além e descreve as relações escusas entre o governo americano e as empresas de informática, discorre sobre como a administração Obama mentiu ao Congresso, fala da perseguição – a maior da história dos EUA – de fontes anônimas de jornalistas sobre material do governo. Harding se diz bastante cético a respeito da iniciativa de se criar uma espécie de Constituição global sobre privacidade e regulação da internet, liderada pelo Brasil e pela Alemanha. “É uma boa iniciativa, mas creio que deve ser visto com ceticismo, porque as grandes coorporações são todas baseadas nos EUA, e o governo poderá conseguir ter acesso a seus dados”, diz. Para ele, mesmo a construção de um sistema de cabos entre Brasil e Europa, como se cogita atualmente, poderia ser interceptado. A criptografia, como Snowden sugere, pode sim, servir de complicador para a vigilância em massa. Não por ser impossível decifrar as informações, mas, sobretudo, porque isso tornaria o custo em grande escala inviável.

Desde a publicação do livro, no início deste ano, novas revelações surgiram e desdobramentos ocorreram. Obama prometeu restringir, em parte, o alcance dos programas de vigilância. De qualquer maneira, o fato é que o objetivo inicial de Snowden foi alcançado: o debate sobre a privacidade na rede mundial e sobre os limites de controle da informação deixou as salas de especialistas e ganhou os jornais, os fóruns e as discussões públicas, seja no parlamento de algum país ou num café da esquina. Ainda assim, porém, a máxima de orwell se mantém de pé.


OS ARQUIVOS SNOWDEN
. De Luke Harding
. Editora Leya, 280 páginas, R$ 35,90

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