sábado, 3 de maio de 2014

Indústria lucrativa

Indústria lucrativa

A romancista Jane Austen, autora que encanta o mundo há 200 anos, está viva e continua faturando. Livros inspirados em suas narrativas são publicados todos os anos, com direito a mashups e policiais


Karina Gomes Barbosa
Estado de Minas: 03/05/2014


A atriz Anne Hathaway como Jane Austen no filme Amor e inocência (Becoming Jane), de 2007: quando a criadora se torna personagem     (Colm Hogan/Miramax)
A atriz Anne Hathaway como Jane Austen no filme Amor e inocência (Becoming Jane), de 2007: quando a criadora se torna personagem


Recém-lançado pela Companhia das Letras, As sombras de Longbourn, de Jo Baker, se debruça sobre as vidas da sra. Hill e dos outros criados que serviam aos Bennet na famosa casa paroquial que abrigava, entre outros, as cinco mulheres solteiras e casamenteiras da família. Irmão literário de Downton Abbey (badalado seriado inglês que acompanha a rotina de uma família aristocrática e dos criados no início do século 20), o livro bebe em uma fonte com pouco mais de 200 anos: Orgulho e preconceito.

E não é o único a fazê-lo. Ali pertinho, dividindo atenções nas prateleiras dedicadas a mulheres nas livrarias, está Austenlândia, da Record, outra experimentação sobre o romance do século 19: uma nova-iorquina contemporânea obcecada por Mr. Darcy, interpretado por Colin Firth na TV, em 1995, tem a chance de viver um amor como o da ficção da minissérie Orgulho e preconceito, da BBC.

Os dois lançamentos são apenas duas das muitas presenças de Jane Austen na cultura contemporânea. Em breve, chegam às livrarias mais dois volumes: Juvenilia reúne escritos juvenis de Austen e de Charlotte Brontë (Austen efetivamente escreveu um volume chamado Juvenilia, com novelas, contos e sátiras). O lançamento é da Cia. das Letras/Penguin. Já a Novo Século traz ao Brasil uma das mais recentes biografias sobre Austen, Uma vida revelada, de Catherine Reef, que já biografou as irmãs Brontë e Ernest Hemingway.

A escritora inglesa, morta há 197 anos, está atual como, na verdade, não foi na vida – duas edições de seus romances chegaram a encalhar. Livrarias dedicam estandes exclusivos às inúmeras edições de cada um dos livros de Jane Austen. Versões bilíngues, obras completas, edições de bolso. Livrarias on-line têm seções com mais de três mil volumes das obras – em capa dura, edição simples, livros eletrônicos e audiobooks. Mais que isso: escritores usam as obras da inglesa como fontes para mashups nos quais os personagens do interior inglês dos séculos 18 e 19 convivem com zumbis, monstros marinhos, são homossexuais ou, sintomaticamente, moram em Hollywood. Jane Austen ganhou uma melhor amiga ficcional de adolescência. Virou vampira. Está viva em 2014.

Ou não. Logo depois de sua morte, a família dela tentou construir a imagem de uma mulher que escrevia por não poder fugir ao chamado das letras. A irmã, Cassandra, também censurou algumas cartas. Mas os biógrafos demonstram que, ao contrário, ela era uma escritora profissional, consciente do valor de suas obras e interessada em lucrar com a publicação dos livros. Austen era implacável no trato com seus editores e negociava preços, direitos autorais, qualidade do papel, prazos de publicação – nem sempre com sucesso. Ainda que ansiasse reconhecimento (e lucro), Jane Austen jamais poderia imaginar a ressonância cultural e transmidiática de suas histórias. Estima-se que Orgulho e preconceito tenha vendido mais de 20 milhões de cópias em todo o mundo. Uma primeira edição de Emma, hoje, é vendida por mais de US$ 200 mil.

Os números expressivos comprovam a permanência de Jane Austen na cultura contemporânea ocidental, com constantes reedições, novas traduções e, especialmente, apropriações que ajudam a torná-la – e mantê-la – relevante. As mais numerosas são, de fato, as literárias, em que encontramos pelo menos 10 tipos de obras. Os mashups, com especial destaque para a mistura dos gêneros de romance com fantasia de zumbis, como Orgulho e preconceito e zumbis (que se prepara para virar filme há alguns anos). Há continuações das obras, especialmente, de novo, de Orgulho e preconceito, como As sombras de Longbourn. Existem ainda narrativas precedentes aos fatos narrados nos livros, as chamadas pre-quels, em inglês, adaptações das obras para os dias atuais (como Austenlândia) e versões das obras para crianças: uma série para bebês transforma os romances em dados, contando, por exemplo, quantas carruagens há na narrativa.

Austen também inspira (ou instiga) uma série de biografias: tanto acadêmicas ou históricas como ficcionais. Um livro, Eu fui a melhor amiga de Jane Austen (e a continuação, ainda não traduzida), narra, como literatura infantojuvenil, os dias de Austen no colégio interno. Há ainda mashups biográficos, como Jane Austen – a vampira, em que a autora ainda vive nos dias de hoje – já que é vampira – e teve sua obra roubada por outra. Ela se torna, assim, personagem literária.

Filosofia do cotidiano


A época em que a inglesa viveu e produziu é objeto de análise em uma série de obras de contexto. Elas buscam apresentar a Inglaterra de Austen, a literatura feminina do período, como era a cultura do chá, as viagens pelo interior, a moda do período regencial, os rígidos costumes sociais. As obras de contexto ganham especial relevo devido à acidez e ironia com que Austen descrevia o panorama inglês de sua época, apresentando ao leitor as diferenças de classes, as injustiças sociais, o ridículo comportamento aristocrático. Têm importância ainda porque, naquele período, as relações amorosas eram regidas sob tais regras sociais: a renda e a posição social das famílias, especialmente das mulheres, poderiam incentivar ou inviabilizar casamentos ou proibir amores entre jovens. Outro campo encontrado nessas obras é o turismo. Tendo em vista a proeminência do espaço nas narrativas da autora inglesa, uma série de guias turísticos busca recriar com o leitor a experiência de viagem dos livros.

Uma das apropriações mais interessantes trata de livros inspirados por Austen. Há algumas séries de romances sentimentais e policiais a partir dela. No campo das policiais, a série “A Jane Austen mystery” tem 22 livros publicados, entre os quais Jane and the madness of Lord Byron e Shoes to die for. Entre os sentimentais, há as séries “Brides of Pemberley”, “Jane Austen diaries” e “The Jane Austen academy series”, sem contar a miríade de volumes avulsos. Todos se assemelham à categoria dos folhetins do século 19. Há ainda várias incursões que mesclam as obras de Austen com temas paranormais, como Pride and pyramids. Um desses volumes inspirados pela autora, recentemente lançado em português, é de natureza um pouco diferente. Intitulado Morte em Pemberley, é de uma das mais famosas escritoras de mistério da atualidade, P. D. James, prova de que a fascinação por Austen captura também autores renomados. Mais uma mostra da vitalidade da autora é que o livro já virou minissérie da BBC em 2013.

Para além da ficção e dos mergulhos em sua obra para encontrar nela questões históricas, sociais, turísticas, Jane Austen adquiriu, nesses dois séculos, um status de conselheira ou filósofa do cotidiano e/ou do sentimento. E é justamente por conta desse status que emergem as obras mais intrigantes derivadas da autora: os guias e manuais. Uma série de publicações explora o potencial pedagógico contido, imaginado, apreendido ou desejado na literatura de Austen, especialmente no que diz respeito à vida amorosa ou a um certo modo de vida feminino identificado com as protagonistas da autora, notadamente Emma Woodhouse e Elizabeth Bennet. Um deles é A fórmula do amor, de Elizabeth Kantor, lançado no Brasil em 2013, que busca em Austen lições de conduta para um modo de amar e se relacionar mais eficiente que a falência amorosa contemporânea. Cada capítulo é uma lição de como se parecer mais com Lizzy Bennet e menos com as modernas Bridget Jones (curiosamente, inspirada na personagem de Orgulho e preconceito).

Os romances de Austen são considerados, assim, fontes para uma série de códigos de comportamento e compreensão da existência e do sujeito que, por sua vez, geram guias e manuais para a vida moderna, servindo como uma espécie de autoajuda ou terapia pessoal para uma sociedade altamente terapeutizada. Ainda que não fosse a intenção da autora, que escreveu, afinal de contas, ficção, seus romances adquiriram um caráter pedagógico ao longo do séculos, notadamente sua maneira de conceber o amor e as relações amorosas.

Bailes de época

A literatura, porém, não é o único campo em que a obra de Austen – ou a autora mesma – é atualizada e referenciada. Anualmente, eventos ao redor do mundo recriam os bailes narrados em Orgulho e preconceito, especialmente o baile de Netherfield (em que os protagonistas Elizabeth e Darcy dançam juntos). São bailes de época, fiéis ao período histórico em que os romances se passam – roupas, músicas, léxico e pronúncia. Esses eventos são organizados, em geral, por sociedades de acadêmicos e, sobretudo, fãs de Jane Austen.

De um lado, percebemos um fascínio inegável pela autora e suas obras, que gera uma infinidade de iniciativas ligadas à produção de Austen, mesmo quase 200 anos depois de sua morte. Para além dessa fascinação, Jane Austen se tornou uma commodity importante na cultura da mídia. O “janetismo”, ou “popularidade extravagante” nasceu nas duas últimas décadas do século 19. A autora e os produtos relacionados a ela são depositários de valor, cultural e material – como commodities, objetos sociais cujas qualidades são, ao mesmo tempo, sensivelmente perceptíveis e imperceptíveis.

Uma commodity é um objeto que, por suas propriedades, satisfaz algum tipo de desejo humano. É fácil perceber que Austen e sua obra vêm sofrendo esse processo de commodificação, em que os produtos têm alto valor cultural – e de troca – bem como estéticos. Para determinadas comunidades, ou grupos culturais, que gravitam em torno da autora e das obras, é uma commodity (ou um grupo delas) extremamente valiosa que transita entre TV, literatura, cinema, moda, memorabilia. E fatura alto em todas elas.

. Karina Gomes Barbosa é doutoranda em imagem e som pela Universidade de Brasília (UnB). Jornalista e professora de comunicação da Universidade Católica de Brasília.

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